Tags

, ,

Foto: Divulgção

Trecho:

“Se ao menos a televisão tivesse chegado a tempo a Medronhais da Serra, talvez ela ainda fosse viva hoje. Mas não: primeiro, foi a electricidade que chegou à aldeia, trazida pela Revolução, embora com atraso, e financiada já por dinheiros europeus. E pouco depois, em 1984, o primeiro aparelho de televisão jamais visto em Medronhais foi instalado no Café Central – o único café e o único centro da povoação.

Medronhais tinha então registradas cinquenta e quatro almas, trinta e oito cães, doze galinheiros e 244 cabeças de gado, entre borregos, porcos, vacas e vitelos. E o Café Central tinha cinco clientes fixos praticamente os mesmos cinco ocasionais. Desses cinco estimadíssimos clientes – todos eles homens -, um era o louco da aldeia, o Borges, que, mal viu o aparelho suspenso sobre uma prateleira lá no alto, entre um calendário com o imortal busto da Ann-Margret, de 1972, e um outro de publicidade ao Licor Beirão, por baixo do solene aviso de que “as bebidas expostas são para consumo na casa”, tinha declarado, alto e bom som e de uma vez por todas, que aquilo era um instrumento de Demónio – o Anticristo, cuja iminente chegada a Medronhais da Serra ele não se tinha cansado de prever e de avisar nos últimos anos. Ficaram, assim, quatro clientes efectivos para a televisão. Dois deles, porém, deviso à vista já cansada, não conseguiam enxergar, entre as 562 linhas que compunham a imagem televisiva do sistema Pal, nada que fosse para além de uns vagos azuis e vermelhos, movendo-se em imperceptíveis danças de cor, como os abrasadores pores-do-sol dos finais de tarde dos dias de verão. Pior ainda, tinham reclamado do Manel da Toca – o empresário de restauração que investira no Café Central e na televisão a cores para Medronhais da Serra – não só a altura a que ele instalara o instrumento de modernidade, como também, pasme-se, a própria modernidade do mesmo:

– Porra, Manel, por que não compraste uma a preto e branco?”

De início, o livro Madrugada suja, do português Miguel Sousa Tavares (1952), pode dar a falsa impressão de ser um romance policial, principalmente devido ao título e ao primeiro capítulo. No entanto, basta o leitor seguir em frente para ver que a história do jovem arquiteto Filipe, de sua família e de sua terra natal, a fictícia aldeia alentejana de Medronhais da Serra, é bem mais que isso: é um inventário dos caminhos seguidos por Portugal desde a Revolução dos Cravos em 1974 até os dias atuais, o que levou o país a ser o que é e como chegou até aí.

O livro começa com uma desastrada e trágica incursão de Filipe, então um estudante de arquitetura da Universidade de Évora, e outros dois conhecidos – João Diogo e Zé Maria – e uma menor de dezesseis anos que acabaram de conhecer, Eva, a um passeio nos arredores da cidade, após uma longa noite de bebedeira e festa. Após doze anos de segredo, o incidente daquela noite voltará a atormentar a vida de Filipe, quando trabalha como arquiteto responsável na cidade litorânea de Odemar.

Entretanto, bem antes do tormento e do remorso daquela fatídica noite afligirem Filipe, Miguel Sousa Tavares, o celebrado autor de Equador e Rio das Flores, nos conduz com sua escrita precisa pela história da família do rapaz, que se confunde com a própria história da aldeia de Medronhais da Serra, principalmente de seu avô, Tomaz da Burra, último habitante da localidade.

 A cada capítulo, o narrador se alterna: Filipe, Tomaz da Burra, sua esposa Filomena, seu filho, Francisco, sua nora, Maria das Graças e, na segunda parte, do médico e político Luís Morais, da delegada Maria Rodrigues, e de um narrador em terceira pessoa. Todas as vozes vão se somando e construindo um painel não só do drama dos personagens, mas o caminho e as escolhas feitas por eles dentro das opções que foram surgindo ao longo da recente história do país.

 Vemos, por exemplo, que Francisco, filho de Tomaz, um sujeito ensimesmado e acabrunhado, vai morar numa das Unidades Colectivas de Produção (UCP), criadas pelo curto governo revolucionário com o objetivo de implantar a Reforma Agrária em Portugal. Mesmo sem muita convicção, Francisco, que perdera a esposa Maria das Graças quatro anos antes, atende ao apelo dos revolucionários que apareceram na aldeia convocando a população, deixando o filho de sete anos, por quem nunca demonstrou muito afeição, aos cuidados dos pais.

Outra personagem importante na trama é Maria das Graças, mãe de Filipe, que, embora com uma passagem curta no romance, é a responsável pela futura aproximação do filho com o médico e político, Luís Morais. Na época, Morais era um jovem médico, que passa um ano no posto de saúde de Medronhais, e Maria das Graças sua enfermeira. Aliás, a construção das personagens é muita bem realizada por Tavares. Mesmo as personagens secundárias – Otávio da Barbearia, Albino das Facas, o padre Anselmo, a professora Fátima, os irmãos Gualdina e Gualter – acabam tendo passagens marcantes ao longo do romance, como o reencontro de Filipe com Gualdina, a primeira mulher que ele viu nua, mesmo sem ela ter ficado sabendo, num instante impregnado de lirismo.

 Na segunda parte do livro, com a saída de Filipe da casa dos avós, o enredo familiar dá espaço para dois temas atuais para os portugueses: as mudanças políticas ocorridas a partir da entrada do país na Comunidade Europeia e os hábitos da classe política, a corrupção e o pouco caso com as questões coletivas em detrimento do ganho pessoal, questão que acaba sendo personificada por Luís Morais. A mudança de enfoque da primeira para a segunda parte do livro, pode-se dizer, é drástica, mas percebe-se que, durante toda a narrativa, ambas caminharam juntas e, que em certo momento, uma acabou se sobrepondo a outra.

 Se na primeira parte o que envolve o leitor são as descrições prosaicas de uma província onde quase ninguém mais vive e que poucas opções restam aos jovens a não ser a de se mandarem, mostrando um país essencialmente agrário, conservador e religioso, na segunda parte, as grandes negociações, comissões, chantagens e negócios espúrios, onde não faltam dinheiro e benesses para quem não tem medo de se sujar, são o que movem a narrativa para o seu final bucólico.

Tavares constrói um romance que deve repercutir por um bom tempo entre seus leitores, especialmente seus patrícios, e demonstra ser um grande analista dos problemas de seu país que, desde os tempos de Eça de Queiroz (1845 – 1900), parece estar envolvido numa discussão: apegar-se às suas tradições, mergulhado em seu passado de glórias, ou abraçar de vez a modernidade e arcar com os problemas que isso possa lhe causar, inclusive a perda da identidade nacional?

Madrugada suja

Miguel Sousa Tavares

352 pgs.

Companhia das letras

Trecho:

“Meses depois, a Revolução levou-nos três homens e, entre eles, foi o meu Francisco. Desde que os militares tinham aparecido em Medronhais, ele ainda ficara mais pensativo, cosido aos seus botões, lendo de fio a pavio os jornais revolucionários que chegavam a Medronhais, sem nada dizer ou comentar, mas absorvendo tudo atentamente. Até que um dia se decidiu. Eu ainda lhe disse:

– Ó filho, mas que vais tu fazer para a tal UCP da terra a quem trabalha, quando aqui está a nossa terra, a tua terra, e que tanto precisa de trabalho? Como me vou virar sozinho na nossa terra, enquanto tu vais lá para as terras colectivas, como eles dizem? E o que é isso da terra colectiva? A terra ou é minha, ou é tua ou é do Zé Pesqueiro: agora, colectiva, não sei o que é. É de quem?

– É de todos, pai – respondeu ele, com um ar sério como nunca lhe vira antes. E lá se foi para UCP Estrela da Alvorada.

Deixou-me a nossa terra para eu a amanhar sozinho, deixou-nos – a mim e à minha Filomena – um neto para criarmos sozinhos. E deixou uma saudade e uma raiva por essa Revolução que me levava filho e ajuda, alguém com quem mais falar, embora ele não falasse assim tanto – e nisso saía a mim. Mas, pronto, partilhávamos o silêncio, e o silêncio a dois não é o mesmo que o silêncio sozinho.”

*Esta resenha teve uma primeira versão publicada no site O Espanador, em novembro de 2013, quando o livro Madrugada Suja foi lançado.