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Autor Françoise-Marie Arouet Voltaire, Contos filosóficos franceses, Resenha Cândido ou O Otimismo
Trecho:
“Pangloss ensinava a metateocosmotologia**. Provava admiravelmente que não havia efeito sem causa e que, neste melhor dos mundos possíveis, o castelo do senhor barão era o mais belo dos castelos, e sua senhora, a melhor baronesa possível.
‘Está demonstrado que as coisas não podem ser de outro modo: pois, tudo tendo um fim, tudo concorre necessariamente para o melhor fim. Observe bem, os narizes foram feitos para usar óculos, e por isso temos óculos; as pernas foram visivelmente instituídas para vestir calças, e por isso temos calças. As pedras formadas para ser talhadas e para construir castelos; por isso, monsenhor tem um belo castelo: o maior barão da província deve ser o mais bem alojado; e os porcos tendo sido feitos para ser comidos, comemos porco o ano todo; portanto, aqueles que afirmaram que tudo vai bem disseram uma tolice: deviam ter dito que tudo vai da melhor maneira possível.’
Cândido escutava com atenção e acreditava com inocência; pois achava a senhorita Cunegundes extremamente bela, se bem que jamais criasse coragem para dizê-lo. Concluía que, depois da felicidade de ter nascido barão de Thunder-tem-tronckh, o segundo grau de felicidade era ser a senhorita Cunegundes; o terceiro era vê-la todos os dias, e o quarto, escutar mestre Pangloss, o maior filósofo da província e, por conseguinte, de toda a terra.” (pgs. 18-19)
O escritor, filósofo e polemista francês Voltaire, pseudônimo de Françoise-Marie Arouet (1694-1778), foi um dos ícones do Iluminismo e um dos autores que mais inspiraram a Revolução Francesa (1789) e a Independência dos Estados Unidos (1776) com seus textos, seus ideais e a ferrenha defesa das liberdades religiosa, política e econômica que praticou durante toda a vida.
Autor prolífico e satirista incomparável transitou pelas mais diversas formas literárias, como teatro, ensaio, romance e poesia, além de uma correspondência que conta com milhares de cartas esparsas, mas foi no conto filosófico que seu talento literário encontrou a forma mais perfeita para sua expressão e, dentre todos os seus contos, Cândido ou O Otimismo, talvez seja a obra-prima pela qual ainda continua sendo reconhecido até hoje.
O conto narra as aventuras e desventuras de Cândido, um jovem simples e ingênuo, discípulo do Doutor Pangloss, o maior sábio da Westfália, região oeste da Alemanha, e que, como seu jovem amigo, desfruta de uma vida boa e contemplativa no castelo do Barão de Thunder-ten-tronckn.
Tendo nascido no castelo e sendo protegido do barão, de quem é uma espécie de agregado da família, Cândido é um entusiasta das ideias de Pangloss, cujo pensamento principal é de que, apesar de haver alguns problemas, “vivemos no melhor dos mundos possíveis”.
Cândido é uma espécie de aluno ideal: atento, paciente e que não questiona seu mestre e nem tem motivos para fazê-lo, uma vez que, de fato, o ambiente dentro do castelo de Thunder-ten-truckn parece um belo exemplo da filosofia que o sábio westfaliano preconiza; porém, o rapaz terá que rever as suas convicções quando é expulso “aos pontapés no traseiro” do castelo por seu senhor depois de ser flagrado atrás de um biombo em atitude suspeita com a filha do barão. Cunegundes, a jovem “roliça e apetitosa”, é a paixão de Cândido, embora, no incidente que precipita toda a sua desgraça, ele não tenha qualquer culpa, uma vez que é um sujeito totalmente sem malícia.
Ao cair na vida, Cândido terá que passar por uma série de provações, castigos, penitências e, viajando por metade do mundo (Europa, América do Sul e Turquia), incluindo uma passagem pela mítica Eldorado e por Lisboa, logo após a cidade ser devastada pelo terrível terremoto de 1755, pôr à prova a visão professada por seu mestre, o doutor Pangloss, e seu amor à bela Cunegundes.
O despotismo, a crueldade e as injustiças, tanto dos poderosos quanto dos religiosos, presenciadas pelo protagonista vão se contrapor a toda a bondade e a virtude da qual ele é o exemplo mais acabado. Ao longo de sua jornada, Cândido também encontrará outros bons e fiéis companheiros – como o moderado e prestativo mestiço Cacambo e o cético livreiro Martin -, que tentarão lhe abrir os olhos diante de um mundo real que se revela totalmente contrário à sua visão ingênua e sentimental.
Publicado em 1759, logo após Voltaire ter sido dispensado do cargo de “conselheiro” do Rei Frederico II da Prússia, cargo que exerceu entre 1750 e 1753 – e impedido de voltar à França por motivos políticos -, Cândido ou O Otimismo foi escrito em Genebra, onde o filósofo viveu até pouco antes de sua morte em 1778. O livro é uma espécie de síntese das ideias de Voltaire, além de uma sátira demolidora à sociedade, à política e às ideias que permeavam o pensamento de meados do século XVIII combatidas pelo satirista francês – as ideias e a própria personagem do doutor Pangloss, por exemplo, foram inspiradas tanto na obra quanto na própria personalidade do matemático e filósofo alemão G. W. Leibniz (1646-1716).
Cândido ou o Otimismo serviu de inspiração para muitas gerações de leitores e para tantos outros autores importantes da literatura universal – o posfácio da edição da 34, lida para esta resenha, é assinado por Italo Calvino, com o título de Cândido e a velocidade, e não podemos nos esquecer que muitas das ideias de Pangloss estão presentes no Humanitismo, corrente filosófica criada por Quincas Borba, um dos principais personagens da obra-prima de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas – e ainda é possível tirar grande proveito de suas lições filosóficas e humorísticas, numa época em que a filosofia e o humor vêm perdendo espaço, não só na literatura como no mundo.
Cândido ou O Otimismo
Voltaire
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora 34
193 pgs.
*Cândido ou O Otimismo é um livro de domínio público, por isso há várias edições disponíveis no mercado. A edição lida para esta resenha, da editora 34, foi publicada em 2013 e conta com o prefácio do tradutor Samuel Titan Jr e, como mencionado no texto, com o posfácio de Italo Calvino, Cândido ou A velocidade, e uma série de ilustrações inspiradas na obra do suíço Paul Klee.
**metateocosmotologia: no original, métaphysico-théologo-cosmolo-nigologie, neologismo cacofônico que associa nigaud (“tolo”) a disciplinas veneráveis. (NT)
Trecho:
“O barão não se cansava de abraçar Cândido; chamava-o de irmão, de salvador. ‘Quem sabe, meu caro Cândido’, disse ele, ‘poderemos entrar juntos e vitoriosos na cidade e resgatar minha irmã Cunegundes!’ ‘É tudo o que eu desejo’, disse Cândido, ‘pois contava me casar com ela, e conto ainda’ ‘Insolente!’, respondeu o barão. ‘Como teria a imprudência de se casar com minha irmã, que tem setenta e dois quartéis! Que afronta, ousar me falar assim de uma intenção tão temerária!’ Cândido, petrificado diante dessas palavras, respondeu: ‘Reverendo padre, pouco importa todos os quartéis do mundo; arranquei sua irmã dos braços de um Judeu e de um inquisidor; ela me deve muito, ela quer me esposar. Mestre Pangloss sempre me disse que todos os homens são iguais, e portanto me casarei com ela’. ‘É o que veremos, patife!’, disse o barão jesuíta de Thunder-tem-tronckh, ao mesmo tempo que lhe dava no rosto um bom golpe com a folha da espada. No mesmo instante, Cândido puxa da sua e a enterra até a guarda da barriga do barão jesuíta; mas, retirando-a ainda fumegante, começa logo a chorar: ‘Ai de mim, meu Deus’, disse, ‘matei meu antigo senhor, meu amigo, meu cunhado; sou o melhor homem do mundo, e lá se vão três homens que matei, dois eram padres’.” (pgs. 88-89)