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Capa: Divulgação

            Trecho:

            “Quantas vezes, diante de mim, nos crepúsculos de novembro, na sua biblioteca apenas alumiada pela chama incerta e doce da lenha no fogão, Fradique emergiu de um silêncio em que os olhares se lhe perdiam ao longe, como afundados em horizontes de tristeza – para assim lamentar, com enternecida elevação, todas as misérias humanas! E voltava então a amarga afirmação da crescente aspereza dos homens, forçados pela violência do conflito e da concorrência a um egoísmo rude, em que cada um se torna cada vez mais o lobo do seu semelhante, homo homini lupus.

– Era necessário que viesse outro Cristo! – murmurei eu um dia. Fradique encolheu os ombros:

– Há-de vir, há-de talvez libertar os escravos; há-de ter por isso a sua Igreja e a sua liturgia; e depois há-de ser negado; e mais tarde há-de ser esquecido; e por fim hão-de surgir novas turbas de escravos. Não há nada a fazer. O que resta a cada um por prudência é reunir um pecúlio e adquirir um revólver, e aos seus semelhantes que lhe baterem à porta, dar, segundo as circunstâncias, ou pão ou bala.”

O português José Maria Eça de Queirós (1845 – 1900) talvez seja o autor de mais relevo internacional de seu país no século XIX; ao menos, é o que teve mais popularidade no Brasil durante o período com uma longa lista de livros de sucessos: O primo Basílio (1878), A relíquia (1887), Os Maias (1888), A cidade e as serras (1900) e A ilustre casa de Ramires (1900). Dentre as suas obras, A correspondência de Fradique Mendes (1900) ocupa um lugar à parte.

A construção do personagem

Carlos Fradique Mendes, personagem criado por Eça de Queirós, Jaime Batalha e Antero de Quental, surgiu pela primeira vez em 1869, quando quatro poemas assinados por ele são publicados no jornal A Revolução de Setembro, acompanhados de uma breve apresentação vinculando-o às ideias estéticas modernistas como as do poeta francês Charles Baudelaire (1821 – 1867). Em dezembro do mesmo ano, mais quatro poemas são publicados no jornal O Primeiro de Janeiro, que mais tarde fariam parte da coletânea Poemas do Macadam.

Em meados da década de 1870, Fradique Mendes surge novamente na imprensa lisboeta, agora já como “personagem de carne e osso”, no Diário de Notícias, envolvido numa trama policial e descrito numa longa carta da Condessa W. Essa carta foi seguida por outras que descreviam um crime e os estranhos acontecimentos que o cercavam. A sequência de cartas cativou e envolveu o público de tal forma que muitos se surpreenderam quando a última carta foi publicada pelos autores – Eça de Queirós e Ramalho Ortigão – confirmando que a história, à qual todos acompanhavam com grande interesse, se tratava de uma ficção.

Mais tarde, em 1884, as cartas foram editadas em formato de livro com o título de O mistério da estrada de Sintra, e já mostrava um Fradique Mendes com uma personalidade aventureira, passando de um poeta influenciado pelo Modernismo para um grande conhecedor do Oriente, viajante experiente, estudioso de exotismos e herdeiro de uma boa fortuna que o permitia usufruir tanto dos prazeres terrenos quanto dos intelectuais, num belo exemplo da espécie social que florescia entre meados e o final do século XIX: o dândi. Será esse personagem resplandecente que Eça irá recuperar, quinze anos mais tarde, em seu livro de correspondências.

Antes ainda de surgir definitivamente em livro, Fradique apareceria em 1888, através de cartas publicadas pelos jornais O Repórter, de Lisboa, e Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro. Na verdade, tais cartas já faziam parte de um projeto pessoal de Eça em transformar Fradique Mendes num personagem representativo de um modernismo que ele via surgir na Europa – principalmente na Inglaterra e na França, onde o autor foi cônsul em Bristol e em Paris – e do qual percebia Portugal ainda muito distante.

O livro

A correspondência de Fradique Mendes é dividida em duas partes: a primeira seria uma apresentação do personagem enquanto a segunda, da correspondência em si, trata das cartas enviadas por Fradique aos seus interlocutores. Importante registrar que o livro não traz uma troca de cartas, uma vez que não há respostas dos destinatários, já que o que interessava a Eça de Queirós é a exposição e a divulgação das ideias, das opiniões e do pensamento de Fradique Mendes.

Na primeira parte do livro, intitulada Memórias e Notas, escrita por um narrador que se identifica apenas como um amigo de Fradique, temos uma narrativa que se inicia por volta de 1880, quando o narrador começa uma relação mais próxima com o protagonista, dez anos após o primeiro encontro entre ambos, ocorrido no Egito.

Esta parte do livro é feita para exaltar a personalidade e o pensamento de Fradique que, no entanto, nunca se preocupou em deixar para a posteridade nada dos seus escritos. Note-se que o narrador não se define como o próprio autor, Eça de Queirós, embora o texto esteja repleto da ironia característica da obra queirosiana, como os leitores habituados à obra do português poderão verificar, permanecendo a sua identidade incógnita.

Embora veja em Fradique um pensador digno, e que poderia ter deixado uma obra de vulto e importância, o narrador cita a recusa de seu amigo em publicar seus manuscritos – e confirma que eles, de fato, existam -, deixando a recomendação para uma das suas interlocutoras, e guardiã de seus espólios – Madame Lobrinska -, que jamais os publique.

Lobrinska obedece fielmente ao desejo de Fradique, para a decepção do amigo/narrador inconformado que, no entanto, como testemunho da passagem do ‘grande homem’ pelo mundo, reúne algumas cartas esparsas, além suas memórias e algumas notas recolhidas sobre o protagonista.

A segunda parte do livro traz as correspondências em si e reúne 16 cartas a diversos destinatários, que tanto são personagens ficcionais (Clara e Mme. Jouarre) como figuras representativas do período (Oliveira Martins, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão). São nessas poucas cartas que estariam expostas as bases do pensamento de Fradique Mendes e que versam sobre praticamente tudo o que estaria ao alcance do conhecimento humano na opinião daquele que Eça de Queirós, em carta enviada ao amigo Oliveira Martins, definiria como “o português mais interessante do século XIX”**.

A correspondência de Fradique Mendes

Eça de Queirós

192 pgs

Best Bolso

* A edição de A correspondência de Fradique Mendes lida para esta resenha foi a da Best Bolso, publicada em 2013.

**No prefácio da edição da Best Bolso, A construção da modernidade por Eça de Queirós, um belo texto escrito por Mônica Figueiredo, a autora detalha a gênese do personagem de Fradique Mendes e o cita como uma espécie de precursor dos heterônimos do poeta Fernando Pessoa (1888-1935).