Trecho:
“- Você tem cada expressão!… – observou Veltchaninov, com ar sombrio, tornando-se extremamente sério.
– Sim, eu me exprimo com termos estranhos…
– E… não gosta de pilheriar?
– Pilheriar? – exclamou Pavel Pavlovitch, sentido. – Logo agora, que lhe participei…
– Ah! Não me fale mais disso, por favor!
Veltchaninov levantou-se e recomeçou a andar no quarto.
Decorreram assim uns cinco minutos. O visitante esboçou um movimento para se levantar, mas Veltchaninov gritou:
– Fique aí… fique sentado!
E Pavel tornou a sentar-se imediatamente na poltrona. – Mas como você mudou! -exclamou Veltchaninov, parando diante do outro, como se esse reparo lhe houvesse ocorrido subitamente. — Mudou terrivelmente, extremamente! Parece outro homem!
– Não admira: passaram-se nove anos!
– Não, não, não! A idade nada tem a ver com isso. Não é tanto o seu aspecto que mudou; é outra coisa! – Também é possível, nove anos…
– Não terá mudado, depois do mês de março?
– Hê! hê! — riu maliciosamente o homem de luto. – Que ideia divertida! E… não sei se deva… Em que consiste a mudança?
– Pois bem, francamente. Você era, em outro tempo, um Pavel Pavlovitch respeitável, decente; um Pavel Pavlovitch bem-comportado; agora… é um patife!
A irritação de Veltchaninov atingira o ponto em que a pessoa mais controlada deixa escapar palavras desnecessárias. – Patife? Parece-lhe? E já não sou bem-comportado? Não? – articulou Pavel Pavlovitch, com uma risadinha satisfeita.
– Não, absolutamente! E agora talvez você seja até inteligente demais.
‘Estou sendo insolente’. continuou Veltchaninov consigo, ‘e esse canalha é mais atrevido do que eu… Mas… qual será seu intuito?’
– Oh! meu caro, meu muito amado Alexei Ivanovitch! exclamou o visitante, com súbita emoção, agitando-se na poltrona. – Que importa isso? Não estamos agora num salão elegante da alta sociedade! Somos dois velhos amigos, muito sinceros; por assim dizer reunimo-nos para falar com sinceridade, para evocarmos juntos o laço de amizade de que a defunta era o elo mais belo.” (pgs. 45-46)
Publicado em 1870, no intervalo de duas grandes obras de seu autor, O Idiota (1868) e Os Demônios (1872), O Eterno Marido é considerado um dos romances curtos mais bem acabados de Fiódor Dostoiévski (1821 – 1880).
No livro, Alexei Ivanovitch Veltchaninov é um homem melancólico de 38 anos, que, em sua vida burguesa em São Petersburgo, sem muitos problemas financeiros, parecia preso por uma eterna insatisfação.
Vítima de “uma tristeza vaga, por assim dizer sem objeto, porém profunda” (pg. 22), Veltchaninov é surpreendido pela visita inesperada de Pavel Pavlovitch Troussotzky, um funcionário público que conhecera nove anos antes quando vivera na província.
O encontro inusitado, ocorrido às três horas da manhã na casa de Veltchaninov, teria o objetivo, por parte do visitante, de informar ao anfitrião da morte da sua esposa, Natália Vassilievna, por tuberculose há quatro meses.
A notícia surpreende Veltchaninov, já que fora amante de Natália e propôs que fugissem juntos. No entanto, a proposta fora recusada por ela, que preferiu manter o casamento com Troussotzky, na época “um sujeito respeitável, decente”, bem diferente daquela figura que vinha importuná-lo com uma notícia que Veltchaninov não queria saber e na qual não via a menor importância.
A conversa é tensa, tem lances da mais pura abjeção por parte de Troussotzky, que se diz vítima de “tormento moral” desde a morte da esposa – sem, entretanto, esclarecer exatamente que espécie de tormento –, mas acaba por combinarem um encontro para a hora do almoço daquele mesmo dia.
Será no encontro que Veltchaninov conhecerá Lisa, a menina de oito anos, filha de Pavel Pavlovitch e de Natália Vassilievna, e reconhecerá nela a verdadeira intenção do outro em lhe reencontrar: apresentar a menina ao seu verdadeiro pai; ele, Veltchaninov.
O encontro com Lisa faz com que Veltchaninov reconheça nela traços da mãe e dele mesmo, fazendo com que creia ser o verdadeiro pai da criança. O sentimento de paternidade, assim como a sua indignação, cresce ao saber e presenciar os maus-tratos que Lisa sofre.
Troussotzky, por sua vez, não aceita deixar a menina quando confrontado com a sua negligência nos cuidados dela e nem reconhece que seria este o motivo – entregá-la ao verdadeiro pai – que o fizera querer reencontrá-lo.
A história se desenvolve através de lances dramáticos e a disputa entre os pais, Alexei Ivanovitch e Pavel Pavlovitch, parece ter lances inacreditáveis de imoralidade e covardia, mas, se não fosse assim, não seria uma história de Dostoiévski.
Apesar de parecer indigno de simpatia por parte do leitor, por nele já estarem presentes ‘o cinismo do homem cansado, um tanto imoral’ e ‘a astúcia’, Veltchaninov ainda conseguirá sair com alguma dignidade já que a pusilanimidade e a abjeção de Troussotzky, ainda que submisso à memória de Natália, se transformarão em crueldade e indiferença ao destino de Lisa.
O Eterno Marido é uma obra da maturidade de Dostoiévski e revela um autor capaz de trabalhar assuntos espinhosos – como a traição amorosa e o abandono de uma criança – e explorá-los até o limite do grotesco e da abjeção humana, fazendo com que as aparentes vítimas se tornem algozes cruéis e sádicos.
O Eterno Marido
Fiódor Dostoiévski
Tradução: Marina Guaspari
183 pgs
Nova Fronteira
*Por se tratar de uma obra de domínio público, no Brasil, existem várias edições de O Eterno Marido disponíveis no momento. A utilizada para esta resenha foi a edição de bolso da Nova Fronteira.