Trecho:
“E as famílias aprendiam, conquanto ninguém lhes tivesse ensinado, quais leis eram injustas, monstruosas e precisavam ser destruídas: o direito de se intrometer na vida particular, o direito de falar alto no acampamento quando todos dormiam, o direito de sedução e de estupro, o direito de adultério, de roubo e de assassinato. Esses direitos eram rechaçados, porquanto os pequenos mundos não poderiam passar uma só noite sequer com a sua existência.
E à medida que esses pequenos mundos se moviam rumo ao Oeste, regulamentos tornavam-se leis, embora ninguém notificasse as famílias. É contra a lei sujar o local, é contra a lei poluir de qualquer maneira a água coletiva, é contra a lei comer coisas boas, suculentas, perto de uma pessoa esfaimada, sem lhe oferecer um pouco de comida.
E com as leis surgiram as medidas punitivas, que eram somente duas: uma luta rápida, de morte, ou então o exílio: e o exílio era a pior delas. Porque quando alguém quebrava as leis e ia embora, seu nome e sua fisionomia espalhavam-se depressa e ele não encontrava mais abrigo em nenhum dos pequenos mundos, onde quer que esses mundos fossem construídos.
Nos mundos, a conduta social tornou-se rígida e fixa, de maneira que um homem tinha de dizer ‘Bom dia’ quando o cumprimento lhe era exigido; um homem podia viver com uma pequena e, se quisesse ficar com ela, teria de protegê-la e proteger-lhe os filhos. Mas um homem não podia ter uma mulher numa noite e outra na noite seguinte, pois que tal coisa viria pôr em risco os mundos.
As famílias moviam-se rumo ao Oeste, e a técnica da construção desses mundos melhorava, de modo que os homens sentiam-se em segurança; e tudo era edificado de maneira tal que uma família que observasse as leis soubesse que as leis a protegiam.
Governos eram formados, governos com líderes e anciãos. Um homem inteligente descobria logo que sua inteligência era de utilidade nos acampamentos, um homem ignorante não conseguia impor sua ignorância ao mundo. E uma espécie de seguro desenvolvia-se nessas noites. Um homem que tinha o que comer alimentava outro que nada tinha, e dessa maneira assegurava comida para si próprio para quando as suas reservas se esgotassem. E quando uma criança morria, uma pequena pilha de moedas juntava-se à porta da tenda dos pais, pois que uma criança tem que ter um enterro condigno, já que nada obteve da vida. Um adulto podia ser sepultado numa vala comum; uma criança, nunca.
Certos requisitos naturais eram indispensáveis para a construção de um mundo: água, a margem de um rio, uma correnteza, uma fonte ou mesmo um encanamento sem vigilância. Era indispensável certa quantidade de terra plana, onde as tendas pudessem ser armadas, um pouco de galhos secos ou lenha para fazer fogueiras. Se existisse perto do local um depósito de lixo, tanto melhor, pois que nesses lugares sempre se pode achar coisas úteis: panelas furadas, uma grade de chaminé para proteger o fogo e latas de conserva que poderiam servir de panelas e pratos.
E os mundos eram construídos à noite. Os homens, vindos da estrada, construíam-nos com as suas tendas, seus corações e seus cérebros.” (pgs. 244 – 245)
Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1962, o norte-americano John Steinbeck (1902 – 1968) sempre mostrou em sua obra uma preocupação social com as camadas sociais mais baixas, os trabalhadores marginalizados e os miseráveis.
Vindo de uma família de classe média-baixa da região de Salinas, na California, região esta que serviu de inspiração e cenário de diversas de suas obras, Steinbeck ingressou na Universidade de Stanford em 1919 e, seis anos depois, embora tenha feito os cursos de Inglês e Literatura, deixou a universidade sem qualquer diploma e foi para Nova York tentar a sorte como escritor freelancer.
Em Nova York, trabalhou em vários serviços temporários, incluindo o de repórter, e publicou algumas obras sem grande repercussão como Cup of gold (1929), The pastures of Heaven (1932) e The God unknown (1933). No entanto, o sucesso viria a partir de 1935, ano em que Steinbeck publicou Tortilla Flat (publicado no Brasil como Boêmios Errantes), que recebeu o prêmio Commonwealth Club de São Francisco.
Após o prêmio e a publicação de Tortilla Flat, Steinbeck publicou três livros que consolidariam seu nome como um dos maiores ficcionistas da sua geração – In dubious battle (Luta incerta, de 1936), Of mice and men (Ratos e Homens, de 1937) e The Grapes of wrath (As vinhas da ira, de 1939).
As vinhas da ira, considerado a sua obra-prima, recebeu o prêmio Pulitzer de ficção e foi levado ao cinema pelo cineasta John Ford, apenas um ano depois da publicação do livro.
É sobre esse livro marcante, não apenas na obra de Steinbeck, como para toda a literatura norte-americana do século XX, que vamos falar um pouco mais.
O livro
As vinhas da ira narra a saga da família Joad, obrigada a deixar sua propriedade rural em Sallisaw, Oklahoma, e migrar para a Califórnia em busca da própria sobrevivência.
A saída da família de suas terras se dá por conta de uma grande seca que afeta as plantações de algodão, das quais quase todos os moradores da região dependem, além da especulação imobiliária promovida pelos grandes bancos, dispostos a pagar quase nada pelas terras áridas e abandonadas pelos moradores, vítimas do flagelo da seca e da miséria.
O livro começa com Tom Joad retornando da prisão de McAlister, onde ficou preso por quatro anos por matar um homem após uma briga, para reencontrar a família. Estamos no início dos anos 1930 e os Estados Unidos vivem a pior crise econômica de sua história, após o Crash, a queda da bolsa de Nova York, em outubro de 1929.
A caminho de casa, Tom percebe as mudanças que ocorreram nos poucos anos em que esteve ausente: a paisagem parece mais tórrida e desértica, pequenos grupos de homens com tratores trabalham nas lavouras e muitas casas estão vazias e abandonadas.
Depois de ser deixado na estrada por um caminhoneiro que lhe deu carona, Tom encontra Jim Casy, o antigo pregador de sua cidade, debaixo de uma árvore, descansando ao lado da estrada. Puxa conversa com Casy e descobre que o homem não é mais pregador e que, pior, ainda tem sérias dúvidas sobre sua fé e de certas atitudes que teve, durante anos, quando pregava aos fiéis.
Decidem seguir viagem juntos até a casa da família Joad, sem saber ao certo se eles permanecem na cidade, uma vez que boa parte das famílias decidiram rumar para o oeste, mais especificamente para a Califórnia, de onde chegam notícias que, além do clima mais salubre, há bastante trabalho para todos em suas plantações de frutas.
Ao chegar em casa, Tom descobre que sua numerosa família estava se preparando para partir para Califórnia – os pais, os irmãos, os avós, o tio – e se junta a eles, mesmo não podendo sair do estado de Oklahoma, já que deixou a prisão em liberdade condicional. Casy, agora apresentado à família, se junta ao grupo.
Durante toda a viagem as tragédias e separações vão reduzindo o grupo que se dispersa. A paisagem e a pobreza mostrada pelo habilidoso texto de Steinbeck vão enredando o leitor numa narrativa naturalista, totalmente despojada de ornamentos, como num filme realista, quase documental.
Há uma clara alusão bíblica na obra de Steinbeck: a migração dos moradores do meio oeste americano em direção à Califórnia, não poderia ser outra coisa senão o êxodo dos hebreus fugidos do Egito em busca de Canaã, a Terra prometida.
Também a profunda religiosidade da família Joad, e daqueles que cruzam o seu caminho – até mesmo de Casy em suas dúvidas sobre a sua fé – demonstra que a religião e a fé estejam entre os principais motivos que fazem toda essa multidão migrar para o oeste. Quando não há nada no mundo real que justifique a esperança de um futuro melhor, todo esse desejo de esperança é transferido para outro plano, no caso, o religioso, uma vez que também se aceita que não há armas suficientes para se lutar contra a injustiça do “mundo dos homens”.
Mas essa injustiça sofrida pelo povo interessa ao autor na medida em que nela Steinbeck insere a sua crítica social, presente em todo o livro. Steinbeck, porém, mostra como os movimentos sociais, como associações de moradores dos acampamentos de migrantes e de trabalhadores e suas redes de solidariedade, servem de apoio e ajudam a diminuir as privações pelas quais toda a multidão de desvalidos passa.
Por outro lado, o martírio de toda essa gente é aumentado pela perseguição que sofrem da polícia, que a serviço dos donos das terras locais, servem de instrumento de opressão sobre as famílias que buscam trabalho para sobreviver. Assim, ao invés de manter a ordem pública e auxiliar a população, a polícia se torna mais um instrumento de controle e violência contra a população vulnerável.
Com seu longo histórico de aproximação com ideias socialistas, não é de se estranhar que Steinbeck em seu país – embora fosse um escritor popular – nunca chegou a ser unanimidade – mesmo tendo recebido o Prêmio Nobel – e que tenha sofrido perseguição e sido atacado por muitos de seus compatriotas por causa dessa proximidade e ter mostrado que o “sonho americano de prosperidade” talvez não estivesse ao acesso de uma boa parte da população, ao menos não naquela época.
No entanto, não ler um livro como As vinhas da ira e não se emocionar com certas passagens ou se lembrar de épicos que retratam em detalhes os habitantes e os momentos de um país em épocas de guerra e de flagelo – no Brasil, especificamente, me lembro de Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1909) – é, de fato, não estar à altura de um livro que pode mudar a visão da vida de qualquer leitor.
Trecho:
“As obras feitas nas raízes das vinhas e das árvores devem ser destruídas, para que sejam mantidos os preços em alta. É isso o mais triste, o mais amargo de tudo. Carradas de laranjas são atiradas ao chão. O pessoal vinha de quilômetros de distância para buscar as frutas, mas agora não podia ser. Eles não iam comprar laranjas a 20 cents a dúzia, quando bastava saltar dos carros e apanhá-las do chão. E homens com mangueiras derramam querosene sobre as laranjas, e eles estão furiosos com o crime, com o crime daquela gente que veio buscar frutas. Um milhão de pessoas com fome, pessoas que necessitam das frutas… e o querosene derramado sobre as faldas das montanhas douradas.
O cheiro da podridão enche o país.
Eles queimam café como combustível de navios. Queimam o milho para aquecer; dá um bom fogo. Atiram batatas nos rios, colocando guardas ao longo das margens para evitar que o povo faminto vá pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos, e deixam a putrescência penetrar na terra.
Há um crime nisso tudo, um crime que está além da compreensão humana. Há uma tristeza nisso, a qual o pranto não pode simbolizar. Há um fracasso nisso, o qual opõem barreiras ante todos os nossos sucessos: à terra fértil, às filas retas de árvores, aos troncos vigorosos e às frutas maduras. E crianças, sofrendo de pelagra, têm que morrer, porque a laranja não deve deixar de dar o seu lucro. E médicos-legistas devem declarar nas certidões de óbito: “Morte por inanição”; porque a comida deve apodrecer, deve ser forçada a apodrecer.
O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas impedem-no. Os homens vêm nos carros barulhentos apanhar as laranjas caídas ao chão, mas elas estão untadas de querosene. E eles ficam imóveis, vendo as batatas passarem flutuando; ouvem os gritos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam as montanhas de laranjas, num lodaçal putrefato. Nos olhos dos homens reflete-se o fracasso. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira diluem-se e espraiam-se com ímpeto, amadurecem com ímpeto para a vindima.” (pgs. 445 – 446)
As vinhas da ira
John Steinbeck
585 pgs
Editora Best Bolso
Tradução: Herbert Caro e Ernesto Vinhaes