Trecho:
“ – Falo sério – disse, distante, a voz de Bruno. – O que aconteceu? Você não se incomoda de me dizer, não é? Estou interessado.
Aconteceu Steve. Guy pegou o seu drinque. Reviu aquela tarde em Chicago, emoldurada pela porta de entrada do quarto, a imagem em preto e branco, como numa fotografia. A tarde em que encontrara os dois no apartamento, aquela e não outra tarde, com suas próprias cores, seu gosto e sons particulares, seu universo próprio, enfim, como uma pequena e detestável obra de arte. Como uma data histórica fixada no tempo. Ou seria exatamente o contrário, isto é, um dia que sempre o acompanhava, para onde quer que viajasse? Pois ali estava ele outra vez, tímido como sempre fora. E, pior, tinha consciência do impulso de contar tudo a Bruno, o estranho do trem que o ouviria, expressaria a sua comiseracão e esqueceria. A ideia de contar a Bruno confortava-o. Bruno não era de modo algum o tipo habitual de estranho que se costuma encontrar nos trens. Era suficientemente corrupto e cruel para apreciar uma história como aquela de seu primeiro amor. E Steve era apenas o fecho-surpresa que fazia com que se encaixassem todas as outras peças. Steve não tinha sido a primeira traição. Fora apenas o seu orgulho dos vinte e seis anos que lhe explodiu em pleno rosto, naquela tarde. Contou mil vezes a si mesmo aquela história, uma história clássica, dramática em sua estupidez. E era essa estupidez que lhe dava humor.
– Esperei demais dela – disse Guy inadvertidamente – sem ter esse direito. Acontece que ela gostava de atenções. Provavelmente vai flertar a vida inteira, não importa com quem esteja casada.
– Sei, o tipo colegial eterna – Bruno fez um aceno. – Não consegue sequer fingir que pertence a um sujeito só.
Guy olhou para ele. Miriam, claro, conseguira, uma vez.
Abandonou bruscamente a ideia de contar a Bruno, envergonhado por quase tê-lo começado a fazer. Bruno agora parecia não dar importância a que ele contasse ou não a história. Desinteressado, com um palito de fósforo fazia desenhos no molho em seu prato. De perfil, a boca descambava entre o nariz e o queixo como a boca de um ancião. Parecia dizer que, qualquer que fosse a história, estava muito abaixo de qualquer crítica para ser ouvida.
– Mulheres como essa atraem os homens – resmungou Bruno – como o lixo atrai as moscas.” (pgs 24-25)
Publicado em 1950, Pacto Sinistro (Strangers on a train) foi o livro que lançou o nome de Patricia Highsmith (1921 – 1995) ao estrelato dos grandes autores de suspense e logo chamou a atenção de um dos mestres do cinema, o inglês Alfred Hithcook, que comprou os direitos cinematográficos da obra, lançando o filme no ano seguinte.
Apesar de não gostar de rótulos, principalmente o de “escritora de suspense” (fato que já discutimos em outro momento*), o nome de Highsmith sempre esteve ligado ao gênero durante toda a sua longa carreira.
O livro
Aos vinte e nove anos, o promissor arquiteto Guy Haines viaja de trem de Nova York para sua terra natal, Metcalf, no Texas, onde pretende, além de passar uns dias com a mãe, se encontrar com a esposa Miriam com quem não convive há cerca de um ano, após a descoberta de que ela vinha lhe traindo há tempos.
Após o afastamento e a recusa de Miriam em lhe dar o divórcio, Guy inicia um caso com Anne, o que só faz aumentar o seu desejo de se separar para que possa se casar novamente, desta vez com a mulher da sua vida.
O encontro com a esposa promete ser definitivo para as intenções de Guy conseguir a separação, pois Miriam está grávida do mais recente amante, Owen, que pretende assumir o relacionamento.
Guy pensa em seu futuro quando conhece no bar do trem Charles Bruno. Jovem simpático de vinte e cinco anos, beberrão e falastrão, Bruno vai contando sua vida, seu amor pela mãe e suas mágoas em relação ao pai, Samuel, um empresário despótico, que subiu na vida graças à herança da esposa, mas que não deixava nem ela nem Bruno, seu filho, usufruírem de uma vida condizente com o seu sucesso financeiro.
Bruno também consegue arrancar muitas confissões sobre a vida de Guy, apesar do arquiteto se esquivar das perguntas mais indiscretas; porém, a essas perguntas que não têm uma resposta mais precisa, Bruno consegue intuir sobre elas, antes de convidar o arquiteto para a sua cabine e fazer a proposta para a resolução dos problemas de ambos: Bruno mataria Miriam para Guy e Guy mataria Samuel para Bruno e ambos nunca mais se veriam.
Para Bruno aquela seria a execução de um crime perfeito que deixaria livre o caminho para a felicidade de ambos. Para Guy aquilo não passava de uma brincadeira de mau gosto feita por um sujeito completamente embriagado e sem maiores consequências.
No entanto, quinze dias após aquele encontro no trem, Guy é surpreendido pela notícia da morte da esposa, assassinada por estrangulamento. A notícia o deixa ainda mais mortificado, pois, no breve encontro que teve com Miriam, dias antes, deixara tudo praticamente acertado com relação ao divórcio.
Apesar das suspeitas da polícia recaírem sobre si, as investigações inocentam Guy que tinha um bom álibi, já que no dia do crime estava com a namorada, Anne, na Cidade do México.
Um ano depois do crime, quando Guy planeja seu casamento com Anne e sua carreira de arquiteto de grandes projetos está prestes a decolar, Bruno reaparece para cobrar a parte de Guy no pacto que, supostamente, teriam firmado. Guy hesita, rechaça as investidas de Bruno, tentando mostrar ao outro que nunca concordou em participar dos crimes propostos por ele.
No entanto, a personalidade obsessiva e psicótica de Bruno não o deixa em paz, enviando os planos de assassinato do próprio pai para que Guy o execute. As ameaças de Guy de denunciá-lo à polícia também não surtem efeito, , pois Bruno sabe que o arquiteto tem tanto a perder com a resolução do assassinato de Miriam quanto ele próprio.
A partir daí o leitor acompanha o inferno em que se transformará a vida de Guy por conta do arrependimento, pela perseguição e a espiral de loucura da qual se torna vítima.
A autora
Os livros de Highsmith são profundos e perturbadores e, diferentemente dos livros de suspense clássicos, onde a descoberta de um mistério é o principal objetivo do enredo, a autora inverte a perspectiva sobre a qual os romances policiais se constroem: Highsmith sempre dará o mistério (crime) pronto, não há segredo e o leitor sempre saberá o que aconteceu, mas o que levará até o fim a leitura dos seus livros é saber como o personagem (vilão) vai se safar ou não da Justiça.
Isso também está colocado em seu outro grande livro, O sol por testemunha (O Talentoso Ripley), de 1955, que lançou a série de livros sobre Tom Ripley, Difícil não ler esses livros de Patricia Highsmith e não se lembrar, por exemplo, de Crime e Castigo, de Dostoiévski – uma influência permanente em toda a sua obra.
Alguém com tanto talento e que ecoa traços de um dos maiores clássicos da literatura universal, de fato, não poderia ser reduzida a um rótulo como o de “autora de suspense” e foi contra isso que a Patricia Highsmith lutou a vida toda e, felizmente, hoje em dia, vem sendo reconhecida como a grande autora que é.
Pacto Sinistro
Patricia Highsmith
Nova Fronteira**
298 pgs
Tradutor: Tite de Lemos
*https://ivanmelz.wordpress.com/tag/resenha-carol/
** No Brasil, a última edição de Pacto Sinistro foi publicada em 2006 pela Ediouro e encontra-se esgotada.
A edição lida para a resenha foi publicada em 1981 pela Nova Fronteira e possui alguns erros de grafia e, em três passagens, há inversões dos personagens protagonistas.
Na página 90, quando Guy fala com Anne, ele é identificado como Bruno. Já nas páginas 107 e 111, quando se trata de Bruno, no primeiro caso conversando com a mãe e, no segundo, andando pelo hotel, o personagem é identificado como Guy.
Esses erros, que não sabemos informar serem do original em inglês ou da revisão da tradução, foram identificados pelo primeiro e atento leitor proprietário do exemplar lido.