Trecho:
“A operação se repete com o Cão ao lado do brete, conduzindo o animal seguinte com a bandeira, calma, boi, e o Crente no seu papel de fiscal lhe dá a extrema-unção, afagando sua cabeça com as mãos, apontando para seu endereço último na Terra. Em poucos minutos, a carretilha parece um varal em movimento, com os bois dependurados ainda vivos, sacolejantes, e suas gargantas degoladas, em convulsão, jorrando sangue e gordura, respingando para todo lado. Após a esfola, os animais são desossados com motosserra e lavados com centenas de litros d’água, até não lhes restar uma só gota de sangue, até sobrar uma carne embranquecida que já nem parece carne e segue para os magarefes fatiarem e embalarem em isopor e plástico.
A velhinha que compra bifes embalados em isopor e plástico no supermercado não quer saber da morte. Ao alcançar a bandeja de isopor a pedido da mãe e olhar para os dois bifes exangues, o menino nem desconfia que existe alguma morte ali embalada. As pessoas empurrando seus carrinhos de supermercado, estimuladas pelo som ambiente, não querem saber qual é o principal produto à venda nos refrigeradores. Melhor esquecer dos preços pela hora da morte. O Cão pensa.” (pgs. 30 – 31)
Em seu mais recente livro, Onde pastam os minotauros, Joca Reiners Terron (1968), uma das vozes mais singulares da literatura brasileira, cria uma fábula que mistura mazelas brasileiras – como miséria e fome -, problemas contemporâneos de escala mundial – que vão desde a tragédia sanitária da Covid até o conflito permanente entre israelenses e palestinos -, mitologia, homens e bois, tudo isso concentrado num microcosmo localizado num lugar fictício do interior de Mato Grosso (ou será que não é tão fictício assim?) – terra natal do autor, que nasceu em Cuiabá, capital do estado.
O resultado é um livro pungente, cuja violência e brutalidade, tanto contra os animais quanto contra e entre os homens, nos faz refletir sobre o caminho que a humanidade vem seguindo e as escolhas que, individualmente, estamos fazendo em troca de algum conforto e de algum dinheiro a mais na conta. Um livro que podemos classificar como metafísico, cuja materialidade concreta de fatos e atitudes, impossíveis de serem negados na realidade, nos leva a questionar nossos ideais de vida e escolhas, e pararmos para refletir e passar algum tempo no mundo das ideias.
O livro
Toda a ação de Onde pastam os minotauros se passa em um único dia, a última segunda-feira do ano, onde o abatedouro localizado no interior do Mato Grosso, lugar onde se passa quase toda a narrativa, se prepara para receber uma comitiva de israelenses que virá vistoriar as dependências da empresa para autorizá-lo a ser exportador de carne kosher – a carne preparada segundo as leis judaicas da alimentação que determinam padrões em todas as etapas do processo – para Israel.
A expectativa dos donos é grande, pois o negócio promete ser lucrativo e aumentar ainda mais o faturamento do abatedouro, que já é exportador de carne halal – que, da mesma forma, tem de seguir uma série de regras islâmicas para o abate animal – para os países islâmicos.
Além da expectativa da visita dos estrangeiros, há ainda a aglomeração de habitantes da região em frente ao prédio do abatedouro. Os moradores vieram em busca dos sacos de ossos que, normalmente, são descartados ou servem de matéria-prima para ração de animais; porém, nessa época do ano, são doados para os moradores mais necessitados da cidade – o que significa praticamente toda a população do município entranhado no Centro-Oeste brasileiro, a região que mais cresce economicamente no país devido à expansão do agronegócio, mas que, infelizmente, não necessariamente reverte em benefícios ou melhorias para todos.
É neste cenário, um tanto quanto confuso e pouco promissor, que três funcionários – Cão, Lucy Fuerza e Crente – planejam um assalto ao cofre da empresa.
Após passar um período na cadeia, por motivo de tráfico de drogas, Cão volta a trabalhar no abatedouro como manejador, o funcionário que conduz os animais para o abate. Ele faz o serviço com dedicação e amor aos bois, que precisam confiar nele, pois, caso o animal se estresse no trajeto final até o abate, sua carne se enrijece, ficando imprópria para o consumo.
Fica evidente, então, a importância da função exercida por Cão, e essa ambiguidade vivida por ele, que oscila entre o amor aos animais e ser o indivíduo responsável por levá-los até à morte, que faz a sua revolta crescer – apesar de não ser o único motivo.
A relação de Cão com os bois é antiga e remonta ao seu nascimento, quando foi encontrado recém-nascido num cocho por um tio de seu amigo Crente, membro de uma família de açougueiros.
Crente, a quem Cão considera praticamente um irmão de criação, por sua vez, é fiscal de esfola e vive um luto pela morte da esposa durante a pandemia enquanto aguarda a alta da filha pequena do hospital. A menina também foi internada por Covid e Crente se sente responsável pela morte da esposa e a internação da filha, já que foi ele que transmitiu a doença para ambas.
Por fim, Lucy Fuerza, namorada do Cão, secretária do abatedouro, que auxilia os patrões no dia a dia do abatedouro, mas guarda uma grande mágoa por presenciar os desentendimentos e as vilezas diárias dos dois, que parecem personagens caricaturais em suas ambições e boçalidades desmedidas.
Embora não participe do planejamento do assalto, outro personagem que tem papel importante no livro é Ahmed, o abatedor do matadouro, responsável pelo abate religioso muçulmano (halal). Ele é palestino e, assim como o Crente, está de luto, mas por conta de sua família ter sido atacada e morta pelo exército israelenses em sua terra natal.
Narrativa policial e morte
Com uma narrativa que lembra a estrutura de um romance policial, inclusive com a cronometragem dos fatos ocorridos neste fatídico dia (os títulos dos capítulos são exatamente o horário em que cada fato ocorre), intercalado com poucos capítulos que remontam à criação do abatedouro, à fundação da cidade e às minuciosas descrições das mortes brutais do rebanho de corte, Joca Reiners Terron cria uma alegoria sobre homens e bois, vida e morte, capital e miséria, num mosaico que forma um romance perturbador.
Em bate-papo de divulgação do livro feito com o autor*, Terron afirmou que, além de uma fábula, “o livro é sobre a morte”. De como a morte está presente em nosso cotidiano, por exemplo, dentro de um supermercado, de uma forma anódina, embalada em plástico e em bandejas de isopor, sem que as pessoas se deem conta (ver trecho).
Essa morte precisa ser eliminada, ou de tal forma apagada, que é necessários cerca de dois mil litros de água para limpar a carcaça de um boi de todo o sangue e impurezas que possam desvalorizar a carne (produto). Em consequência, em Onde pastam os minotauros, o rio próximo ao abatedouro secou e é preciso trazer a água de outros lugares para que todo vestígio da morte seja eliminado.
Portanto, praticamente onipresente, a morte não se restringe apenas aos seres vivos – bois e homens -, mas se espalha para todo o entorno do próprio matadouro, tornando-o um centro gerador de morte e destruição permanente, e o final caótico e catártico do livro, em que não há redenção nem salvação, seria a comprovação de que o massacre de homens e de bois não tem trégua, tanto no sentido figurado quanto no literal.
Onde pastam os minotauros
Joca Reiners Terron
182 pgs
Todavia
*Bate-papo realizado pela editora Todavia com a presença de livreiros e influenciadores em julho deste ano.