Trecho:
“Juca Sabão era para mim uma espécie de primeiro professor, para além da minha família. Foi ele que me levou ao rio, me ensinou a nadar, a pescar, me encantou de mil lendas. Como aquela que, nas noites escuras, as grandes árvores das margens se desenraizam e caminham sobre as águas. Elas se banham como se fossem bichos de guelra. Regressam de madrugada e se reinstalam no devido chão. Juca jurava que era verdade.
As lembranças me surgem velozes como nuvens. Recordo aquela vez em que Sabão se encomendou de uma expedição: queria subir o rio até à nascente. Ele desejava decifrar os primórdios da água, ali onde a gota engravida e começa a missanguear do rio. Juca Sabão muniu-se de mantimentos e encheu a canoa com os mais estranhos e desnecessários acessórios, desde bandeiras a cornetas. Demorou umas tantas semanas. Regressou e fui o primeiro a recebê-lo, nas escadas do cais. Olhou-me cansado, e disse:
– O rio é como o tempo!
Nunca houve princípio, concluía. O primeiro dia surgiu quando o tempo já há muito se havia estreado. Do mesmo modo, é mentira haver fonte do rio. A nascente é já o vigente rio, a água em flagrante exercício.
– O rio é uma cobra que tem a boca na chuva e a cauda no mar.
Assim proferindo, Juca Sabão me pediu que me aproximasse. Seus dedos me fecharam as pálpebras como se faz aos falecidos. Certas coisas vemos melhor é com os olhos fechados. Neste momento, é como se ainda sentisse suas mãos sobre o meu rosto.” (pg. 61)
Publicado originalmente em 2002, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do moçambicano Mia Couto (1955), vencedor do Prêmio Camões de 2013, é um livro que impressiona pela beleza que o próprio título já parece antecipar.
No livro, o narrador, o estudante Mariano, retorna à sua terra natal, a ilha de Luar-do-Chão, para enterrar o avô paterno, Dito Mariano, o patriarca da família (munumuzana, na língua nativa). Há muito tempo longe do lugar, os modos de Mariano parecem os dos brancos da cidade (mulungos), o que o faz um estranho aos olhos da maioria dos habitantes da localidade, inclusive para seus parentes.
Os hábitos de luto também parecem muito estranhos ao rapaz – como retirar o telhado da casa da família (nyumba-kaya) durante o período de velório, que pode durar dias.
A escolha de Mariano, feita pelo próprio avô antes de sua morte, para ministrar as cerimônias fúnebres, cria uma série de desconfortos e intrigas na família, sobretudo entre seu pai, Fulano Malta, sua avó, Dulcineusa, e seus tios Abstinêncio, Últimio e Admirança. Cada qual com os seus motivos – inveja, rancor, medo, vergonha -, fazem da cerimônia, naturalmente dolorosa, a antecipação de uma disputa pelo poder de uma família fragmentada prestes a se desintegrar de vez.
No entanto, mais do que a intriga familiar, ainda agravada por misteriosas cartas anônimas recebidas pelo rapaz, algumas delas assinadas até por seu avô defunto, um misterioso fenômeno ocorre impedindo que o corpo de dito Mariano seja enterrado e que o velho possa finalmente descansar em paz. O fenômeno, aparentemente sobrenatural, ao que tudo indica, foi causado por um segredo que envolve a morte da mãe de Mariano, Mariavilhosa, ocorrida há muitos anos.
No entanto, o segredo pode ser ainda mais antigo e a morte de sua mãe pode ter sido apenas algo pequeno diante da verdade que envolve a família de Mariano. Caberá a ele, então, descobrir o motivo pelo qual se torna impossível o sepultamento do avô.
Misturando fantasia a uma prosa profundamente poética, Mia Couto recria um espaço fantástico numa África pós-colonial, onde as tradições ancestrais de um povo – em que a crença que as forças da natureza, como a água ou a terra, atuam para premiar os bons ou punir os maus indivíduos -, se digladiam com as novas e prementes necessidades de sobrevivência num mundo cada vez mais hostil ao homem.
Mia Couto faz de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra uma brilhante saga familiar, ao melhor estilo do colombiano Gabriel Garcia Márquez (1927-2015), amparada sobre uma poesia narrativa, inspirada numa de suas principais influências literárias, o brasileiro Guimarães Rosa (1908-1967), que também se tornou uma das principais características deste autor que, hoje, é um dos maiores prosadores de língua portuguesa.
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
Mia Couto
Companhia das letras
262 pgs.
Trecho:
“(…) E eu vou ficando calado. Mesmo aos domingos de manhã: fico calado. Assim, silencioso, vou rezando. Que a gente reza melhor é quando nem sabemos que estamos a rezar: O silêncio, doutor. O silêncio é a língua de Deus.
Era o silêncio que me assistia quando visitava meu primo Carlito Araldito, sapateiro de profissão. Eu permanecia sentado contemplando seus ofícios. À saída, lhe dizia: minha vida, sabe, Araldito, minha vida é um sapato desses, usado de velho. A gente pode voltar a calçar, o cabedal pode voltar a brilhar, mas somos nós que já não brilhamos. Entendeu? Uma coisa assim em segunda mão. Em segundo pé, no caso. Ríamos, mas era sem vontade. Eu e Araldito. Falávamos de nós como se de amigos já falecidos. Estávamos assistindo ao nosso próprio funeral.
Assinado e reconhecido: Dito Mariano. (pg. 150)”