Tudo o que sou – Anna Funder – Companhia das Letras
Trecho:
“Ele se colocou atrás de mim e pousou as mãos úmidas e ácidas na minha barriga. Um grupo avançado de flocos de neve rodopiou à nossa frente, revelando remoinhos ocultos no ar. Os holofotes acariciavam os ventres das nuvens. Passos lá embaixo. Quatro homens passaram correndo pela nossa rua, segurando tochas erguidas e chamas inclinadas. Senti cheiro de querosene.
‘Nós – queremos – o chanceler!’ Ao longe, a massa cantava para ser salva. Atrás de nós, no aparador, a reação ecoou no rádio, metálica, mansa e com três segundos de atraso.
Em seguida, uma grande ovação. Era a voz do líder deles, aos berros. ‘A missão que nos aguarda. É a mais difícil de todas. Para os estadistas alemães de que o homem se recorda. Todas as classes e todos os indivíduos devem nos ajudar. A formar. O novo Reich. A Alemanha não pode, não vai, afundar no caos do comunismo.’
‘Não’, disse eu, a face colada ao ombro de Hans. ‘Vamos afundar numa saudável mentalidade nacional-populista e de maneira organizada.’
‘Nós não vamos afundar, Ruthie’, sussurrou ele ao meu ouvido. ‘Hitler não conseguirá fazer nada. Os nacionalistas e o gabinete vão mantê-lo na rédea curta. Só o querem como testa de ferro” (pg. 11)
Se todo o mundo sentiu o terror do nazismo apenas em 1939, após a invasão da Polônia e a deflagração da Segunda Guerra Mundial, na Alemanha foi diferente. Já em janeiro de 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, um grupo de intelectuais, escritores e jornalistas, sentia na pele o que o governo recém empossado seria capaz de fazer para manter sua posição de comando, colocando em prática o projeto de aniquilação de todos aqueles que se opunham à construção do Terceiro Reich. E é exatamente desse período conturbado e pouco conhecido pela maioria que Tudo o que sou, livro da australiana Anna Funder, irá tratar.
Vivendo na Austrália, Ruth Becker é uma nonagenária judia-alemã de saúde frágil que divide seu cotidiano entre internações hospitalares e, quando tem alta, algum lar de idosos para o qual é encaminhada, já que não possui família. No entanto, em sua juventude, militou em movimentos de esquerda que foram os primeiros alvos do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães e de seu líder, Adolf Hitler.
O passado distante retorna após receber manuscritos inéditos do dramaturgo Ernst Toller, morto em 1939. Através dos escritos, ela relembrará o período passado ao lado do marido, o jornalista Hans Wesemann, que fazia ferrenha oposição aos nazistas, atacando-os e ridicularizando-os nos jornais em que trabalhava. Perseguido, o casal foge para Londres, onde aluga um apartamento e, mesmo contrariando uma proibição do governo inglês, que impedia reuniões ou manifestações de grupos contrários a políticas aplicadas em outros países, formam um movimento de resistência ao regime nazista no exterior, recebendo dissidentes e acusando o governo alemão de perseguição política, de pretensões expansionistas e de estar construindo uma máquina de guerra com a conivência de todos, inclusive dos outros países europeus, que não percebiam que a escalada de terror dentro da Alemanha poderia ter consequências catastróficas.
A jornalista e escritora Dora Fabian, prima de Ruth, é uma das dissidentes recebidas pelo casal em Londres. A partir da chegada de Dora é que a campanha de oposição aos nazistas começa a ganhar voz e corpo incomodando, de fato, o regime. Bem articulada e com ampla experiência dentro das organizações de esquerda alemãs, Dora é amiga (e amante) de Ernst Toller, poeta e dramaturgo, que foi um dos primeiros autores a terem seus textos proibidos pelo partido nazista.
Toller havia sido um dos principais apoiadores e líderes do movimento de esquerda que tentara implantar o socialismo no país, no rastro da Revolução Russa de 1917. Com a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial e o fim do Império Alemão, o governo que o substituiu, a enfraquecida e endividada – já que teria que pagar as dívidas de guerra -, República de Weimar, sofria pressão tanto da extrema direita quanto da extrema esquerda, que tiveram seus líderes presos – entre os da direita estava Hitler, e Toller, entre um dos líderes da esquerda.
Toller era um intelectual bem relacionado, com amigos influentes, como o poeta inglês W. H. Auden – para se ter uma ideia, Thomas Mann e Albert Einstein foram testemunhas de defesa em seu processo -, mas, mesmo assim, acabou condenado, cumpriu cinco anos de prisão e, em liberdade, foi viver em Nova York. O que não quer dizer que deixou de fazer política longe da Alemanha: em suas palestras e aparições públicas sempre atacava o governo de Hitler.
Setenta anos após aqueles acontecimentos, Ruth parece pronta para entender tudo o que viveu e as lembranças esparsas da juventude começam a fazer sentido, agora, amparadas pela nova perspectiva que o manuscrito escrito por Toller em Nova York lhes dá.
Para construir a personagem de Ruth Becker, a autora se inspirou em depoimentos de sua professora de alemão Ruth Blatt. Ernst Toller, Dora Fabian e Hans Wesemann são personagens reais e que, infelizmente, viveram os episódios narrados alternadamente pelas memórias de Ruth e pelo texto de Toller. O clima opressivo e paranoico é crescente, deixando entrever o desfecho trágico – não no plano histórico-mundial, que é mais do que sabido – no plano individual: a perseguição do governo de Hitler aos seus opositores mesmo em terras estrangeiras e a vista grossa feita pelos governos europeus – seja por omissão ou por inépcia – ocasionou aquilo que eles próprios temiam, outro conflito de proporções mundiais apenas vinte e cinco anos após o início do primeiro.
Ao misturar fatos verídicos com ficcionais, Funder constrói um livro que mostra que não há limites para o ódio e para a destruição, pois, enquanto houver alguém disposto a colaborar ou a se calar diante deles, a mentira e o medo pode prevalecer sobre a verdade e a coragem.
P.S: Texto de apoio O CONTEXTO HISTÓRICO DA ALEMANHA APÓS A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E A ASCENSÃO DO NAZISMO, de Marcos Emílio Ekman Faber.
Disponível em http://www.historialivre.com/contemporanea/hitler.htm
Tudo o que sou
Anna Funder
Tradução: Luiz A. Araújo e Sara Grünhagen
Companhia das Letras
423 pgs.