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Foto: Divulgação

Trecho:

“Uma mosca apareceu e começou a voar ao redor da mesa. Ficamos todos a observá-la.

– Não há nada pra comer aqui – disse meu pai. – A mosca veio ao lugar errado.

A mosca foi ficando mais audaciosa. Os círculos que descrevia se aproximavam cada vez mais de nós, assim como mais presente se fazia seu zumbido.

Você não vai dizer nada aos tiras sobre a possibilidade do John voltar para casa, certo? – perguntou minha tia a meu pai.

-Não se preocupe. Não vou dar essa moleza a ele.

A mão da minha mãe cortou o ar. Fechou-se e ela a trouxe de volta à mesa.

– Peguei – ela disse.

– Pegou o quê? – perguntou meu pai.

– A mosca – ela sorriu.

– Não acredito…

– Vê a mosca voando por aí? Ela sumiu. 

-Vai ver que voou para outro lugar.

-Não, está aqui na minha mão.

-Ninguém tem reflexos tão rápidos assim.

Garanto que ela está na minha mão.

– Bobagem.

– Não acredita em mim?

– Não.

– Abra a boca.

– Está bem.

Meu pai abriu a boca, e minha mãe empurrou sua mão fechada sobre ela. Meu pai deu um pulo, agarrando o próprio pescoço.

– JESUS CRISTO!

A mosca saiu da boca e recomeçou a voar em círculos ao redor da mesa.

– Basta – disse meu pai -, estamos indo pra casa!”

Há trinta anos, completados no último dia 9 de março, morria Charles Bukowski (1920 – 1994), um autor com uma vasta e polêmica obra literária, que passou por quase todos os gêneros literários, e que move muitos sentimentos e, exatamente por isso, parece ser impossível ter a respeito dele uma opinião neutra: ou se ama ou se odeia Bukowski.

Para começar, o autor nasceu em Adernach, na Alemanha, em 1920, pouco depois do fim da Primeira Guerra Mundial. Batizado como Heinrich Karl Bukowski, seu pai era um soldado norte-americano que se casou com uma alemã e foram morar nos Estados Unidos dois anos após o nascimento do filho. Essa origem marcaria sua infância e juventude, uma vez que norte-americanos e alemães nunca foram povos muito próximos, e Bukowski realça isso principalmente em seus romances Factótum (1975) e Misto-quente (1982), além de um ou outro conto que remete à sua infância.

A postura antissocial, machista e às vezes misóginas dos protagonistas de suas narrativas renderam a Bukowski muitos detratores. Por outro lado, com narrativas cheias de sexo, palavrões e vícios – seja em bebida ou em jogo – o autor costuma ter muitos aficionados no público mais jovem, que tem a tendência a idolatrar a obra do “Velho safado”, como o escritor é conhecido.

O seu estilo cru e direto fez dele um autor bastante imitado entre autores com uma postura mais hedonista e marginal. Aliás, essa postura fez com que Bukowski muitas vezes fosse confundido como um membro da geração beat, rótulo que o autor detestava, por ser contemporâneo dos beats e não ter nenhuma admiração por eles nem por suas obras.

Misto-quente e a trilogia autobiográfica

Ao lado de Hollywood (1989) e Factótum (1975), Misto-quente faz parte da trilogia autobiográfica do autor protagonizada por seu alter ego Henry Chinaski.

No entanto, diferentemente de Factótum, em que um jovem Chinaski tem que se virar para sobreviver de bicos ao retornar aos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial, num mundo em profunda crise econômica, e de Hollywood, em que o protagonista, aos sessenta e sete anos, surpreendentemente começa a fazer sucesso como roteirista de filmes no sofisticado mundo das estrelas do cinema americano, Misto-quente é o clássico bildungsroman’- ou romance de formação – em que o personagem principal passa por inúmeras provações, da infância à idade adulta, até alcançar o seu amadurecimento e descobrir o seu lugar no mundo.

No entanto, precisamos lembrar que Misto-quente é um romance de formação no estilo Bukowski: cru, por vezes brutal, sem nenhuma autocompaixão e com muitos palavrões, muita pancada e bebedeiras homéricas, o que leva muitos estudiosos e admiradores da obra do autor a acreditarem que “quem não leu Misto-quente, não leu Bukowski”.

A pobreza quase miserável é algo comum nos subúrbios de Los Angeles, onde se passam as histórias de Bukowski. Em Misto-quente, sobretudo, essa sensação é mais aguda, uma vez que o período em que se desenvolve a narrativa é pouco antes do Crash de 1929 até o início da Segunda Guerra Mundial, quando o protagonista, já na faculdade, recebe a notícia do ataque japonês a Pearl Harbour.

As descrições precisas de pessoas e ambientes e a linguagem direta, sem floreios, denota a grande influência que Ernest Hemingway (1899-1962) exerceu sobre a prosa de Bukowski, que, por sua vez, colocava no humor uma diferença marcante em seu estilo em relação ao autor de O velho e o mar. Outra influência do autor é Henry Miller (1891-1980), essa muito mais clara quanto ao aspecto da escatologia e da auto ficção.

Pais, infância e juventude

O pai de Henry Chinaski tem o mesmo nome que ele e é abusivo e irascível. Já no início do livro, o filho reconhece: “Meu pai não gostava de gente. Não gostava de mim”.

Depois de voltar aos Estados Unidos, após dar baixa do exército, Henry Chinaski (pai) apenas arruma empregos ruins ou, pior, quando não tem emprego algum, recebe pensão do governo como desempregado e tickets de mercado. No entanto, como é um homem orgulhoso, sai todo dia de manhã em seu Ford Modelo -T como se fosse ao trabalho para que os vizinhos não saibam que está na mesma situação desesperadora que eles, uns pés-rapados que despreza.

A mãe, Katy, alemã de origem, era passiva e sofria tanto na mão do marido quanto o filho, mas é responsável por uma das cenas mais hilárias do livro (trecho acima), em que Henry vai visitar o irmão mais velho, John, e não o encontra. Apenas a esposa dele, Anna, e as duas filhas do casal, à míngua, após John sumir a mais de uma semana, por ter sido acusado de estupro.

Essa sequência, logo no início do livro, demonstra a capacidade de Bukowski, de começar uma descrição abjeta, de extrema dor e angústia, e, de repente, terminá-la de forma inusitada, chegando a arrancar gargalhadas do leitor.

Os problemas ocorridos na infância, em que passou quase o tempo todo aprendendo a apanhar – seja do pai, dos colegas da escola ou dos garotos da vizinhança -, não acabaram com a chegada da adolescência. Na verdade, a dificuldade apenas se transformou em outra: um sério problema de acne, tanto em seu rosto quanto em suas costas, causando dores terríveis e desconfortos constantes, além do uso de uma medicação cara, a qual quase nunca tinha acesso devido à falta de dinheiro.

Com o fim do ensino médio, os problemas com o pai aumentam, inclusive com brigas sérias que o fazem deixar a casa dos pais. Chinaski vai então morar sozinho numa água-furtada num bairro barra-pesada.

Apesar da entrada na faculdade e a leve esperança de que as coisas possam melhorar através da escrita à qual começa a se dedicar, as bebedeiras, o envolvimento em contantes brigas e confusões devido à proximidade com a marginalidade, fazem com que o protagonista permaneça afundado numa espiral negativa e encaminhe o livro para um final em aberto e mais lírico do que prometia.

Mas este final surpreendente faz todo sentido quando lemos os outros dois livros protagonizados por Henry Chinaski – Factótum e Hollywood – e entendemos que quem disse que “quem não leu Misto-quente, não leu Bukowski” devia saber o que estava falando.

Misto-quente

Charles Bukowski

L&PM

Tradução: Pedro Gonzaga

320 pgs.

Trecho:

“Enquanto isso, os pobres e os fracassados e os idiotas continuavam se agrupando ao meu redor. Havia um lugar em que eu gostava de comer debaixo das arquibancadas do campo de futebol. Trazia minha lancheira marrom com meus dois sanduíches à bolonhesa. Eles se aproximavam:

– Ei, Hank, podemos comer com você?

– Deem o fora daqui, seus fodidos! E não vou avisar duas vezes! Tipos demais dessa espécie já tinham se achegado a mim. Não me importava muito com eles: Carequinha, Jimmy Hatcher, e um garoto judeu, magro e desajeitado, Abe Mortenson. Mortenson só tirava notas máximas, mas era um dos maiores idiotas da escola. Havia alguma coisa radicalmente errada com ele. Não parava de produzir saliva na boca, mas em vez de cuspi-la no chão, para se ver livre do incômodo, cuspia nas mãos. Não sei por que ele fazia esse tipo de coisa e também não perguntei. Eu não gostava de fazer perguntas. Apenas observava, enojado. Uma vez voltei com ele para casa e descobri como ele conseguia seus “As”. A mãe o obrigava a enfiar o nariz num livro assim que ele chegava e ela o mantinha ali. Ela o fazia ler os livros didáticos, um após o outro, página por página.

– Ele precisa passar nos exames – ela me disse.

Nunca ocorreu a ela que talvez os livros estivessem errados. Ou que talvez isso não tivesse a menor importância. Contudo, nada lhe perguntei. Era novamente como no ensino fundamental. Reunidos ao meu redor estavam os fracos em vez dos fortes, os feios em vez dos belos, os perdedores em vez dos vencedores. Era como se meu destino fosse cruzar a vida em companhia deles. Isto não me incomodava tanto quanto o fato de que para esses cretinos, para esses companheiros idiotas, eu era um cara irresistível. Eu era como um monte de bosta que atraía moscas em vez de ser uma flor desejada por borboletas e abelhas. Eu queria viver sozinho, me sentia melhor assim, mais limpo; no entanto, eu não era esperto o suficiente para me livrar deles. Talvez eles fossem meus mestres: pais de outra maneira. De qualquer forma, era duro aguentá-los ao meu redor enquanto comia meus sanduiches à bolonhesa.”

*A edição de Misto-quente lida para esta resenha foi a publicada pela L&PM. No momento, no Brasil, a obra de Bukowski está sendo toda reeditada pela Harper Collins que ainda não publicou esse livro até a publicação dessa resenha.