Trecho:
“Não me entenda mal. O Inferno não é tão terrível assim, não se comparado ao Acampamento Ecológico e especialmente se comparado ao colégio. Pode me chamar de ranzinza, mas não tem muita coisa que se compara a ter as pernas depiladas com cera ou o umbigo furado com piercing num quiosque de shopping. Ou bulimia. Não que eu pareça, nem de longe, com uma Periguete da Silva com distúrbios alimentares.
Minha maior fraqueza ainda é a esperança. No Inferno, a esperança é um hábito bem, bem feio, como fumar ou roer as unhas. Esperança é algo que exige muita tenacidade para se deixar de lado. É um vício a vencer.
(…)
Não importa o quanto resista ao impulso, continuo esperançosa: ainda terei a primeira menstruação. Continuo na espera de ficar com peitões bem grandes como Babette, da cela ao lado. Ou com a esperança de enfiar a mão no bolso da bermuda-saia e encontrar um Xanax. Cruzo os dedos para que, se um demônio me atirar num tonel de lava borbulhante, eu seja jogada pelada junto com River Phoenix, e que ele diga que sou bonita e tente me beijar.
O problema é que no Inferno não há esperança.
Quem eu penso que sou? Em milhares de palavras… não faço ideia, mas estou considerando abandonar a esperança. Por favor, me ajude, Satã. Isso me faria tão feliz. Ajude-me a vencer meu vício em esperança. Obrigada.” (pgs. 28- 29)
A protagonista de Condenada, novo livro do norte-americano Chuck Palahniuk, lançado no Brasil pela editora Leya, Madison Spencer é uma menina de 13 anos, inteligente, insegura e acima do peso, filha de uma estrela e de um produtor de Hollywood bilionários, que acabou indo parar no Inferno por causa de uma overdose de maconha.
Claro que ninguém morre de overdose de maconha, Madison também sabe disso, mas, enquanto a causa da sua morte não é revelada, vai passando a história para espanto e descrença de quem cruza o seu caminho nos domínios de Satã. E a cada início de capítulo, a menina se remete ao Príncipe das Trevas, “Está aí, Satã! Sou eu Madison…” num misto de apelo e desabafo que nunca recebe resposta, como toda súplica direcionada a alguém tão indiferente ao nosso sofrimento como um político que não está em período de campanha.
No Inferno, aos poucos, Madison vai se adaptando ao sofrimento eterno infligido pelos demônios ao lado de seus quatro companheiros de martírio – uma chefe de torcida (Babette), um jogador de futebol americano (Patterson), um nerd especialista na vida no Tártaro (Leonard) e um punk de cabelo azul (Archer) – enquanto relembra sua vida e faz uma viagem de autoconhecimento numa espécie de romance de formação metafísico.
E, como em todo livro de Palahniuk, o sarcasmo e a ironia estão presentes em toda a narrativa. A começar pelos castigos infligidos aos condenados que são bem particulares: vão desde sessões infinitas de O Paciente Inglês, passando por ter seus corpos destroçados e comidos pelos demônios mais horríveis de todas as culturas e ter o corpo reconstituído para sofrer os mesmos castigos e flagelos, até o trabalho (pois é, no Inferno de Palahniuk, não basta o sofrimento, também tem que se trabalhar) numa central de telemarketing ligando para os vivos, na hora do jantar, para fazer pesquisa sobre os assuntos mais inócuos possíveis, como a utilização de clips de papel ou pesquisa de mercado sobre goma de mascar.
As descrições do Inferno também têm um lugar à parte no livro com seus deserto de caspas e unhas, oceano de esperma desperdiçado e lagos de merda e bile tépida, e, embora a edição brasileira dê destaque para essa visão muito particular do autor sobre o Inferno, acredito que a força do romance esteja mais nas partes em que ele mostra o quão ridícula é uma sociedade que dá valor às aparências, a norte-americana em especial, mas o ocidente, de um modo geral, não foge muito daquilo que o autor descreve, apesar do assunto realmente não ser nenhuma novidade como tema, nem na obra de Palahniuk.
O mundo das celebridades, por exemplo, representado e vivido pelos pais de Madison e seu discurso politicamente correto meio hipócrita. Enquanto a filha tem sérios problemas psicológicos e de convivência na escola por não se adequar, inclusive fisicamente, ao fato de seus pais serem estrelas de primeira grandeza de Hollywood, eles estão sempre à procura de um órfão de um país em guerra civil para adotar e depois mandá-lo para algum colégio interno suíço para revê-lo provavelmente no Natal, se a agenda deles permitir. Goran, o irmão adotivo um ano mais velho que Madison, vindo de um país europeu em conflito, terá um papel importante na história.
O romance vai avançando, alternando passagens do grupo perambulando pelos círculos infernais e com o trabalho na central de atendimento, onde Madison se descobre uma excelente arrecadadora de almas para o Inferno, à medida em que consegue convencer pessoas em fases terminais de doenças de que o lugar não é tão ruim se comparado com a vida que elas têm tido nos últimos tempos. Claro que os bons serviços prestados vão aumentando a autoconfiança de Madison, levando-a, finalmente, a encontrar Satã, sem não antes ter de passar por uma série de provas e derrotar inimigos terríveis. Nesse sentido, o livro não deixa de ter um certo apelo juvenil nas provas pelas quais a heroína deve passar antes do tão aguardado encontro.
Palahniuk é um provocador e foge da mesmice literária, embora, às vezes, exagere na dose e caia num mau gosto quase que gratuito – a parte em que é narrada o encontro do grupo com a gigante sérvia Psezpolnica e a forma como eles conseguem se livrar do perigo me parece um bom exemplo disso -, mas consegue arrancar boas risadas do leitor apesar de no final termos a impressão de que se podia ir mais longe, não tanto na fantasia, mas na própria crítica realizada pelos olhos e pela voz de Madison que é uma boa narradora, com quem o leitor simpatiza e se identifica logo de início
Este é o quarto livro de Palahniuk (Clube da Luta, Canção de ninar, Snuf e Condenada) que leio e, excetuando-se Clube da Luta, que se tornou um clássico contemporâneo (se é que isso existe), não só pela ótima adaptação feita para o cinema por David Fincher em 1999, mas pela própria qualidade da obra, os outros livros parecem não ter alcançado a excelência de seu livro de estreia. O que é uma pena, já que, com sua verve satírica, o autor poderia atingir um público muito mais amplo.
Na verdade, talvez quem esteja exagerando sou eu, já que a literatura não deve trazer resposta para nada ou mostrar o caminho para ninguém. A literatura deve trazer, isto, sim, muitas perguntas e isso Palahniuk faz bem. Quem quiser respostas para alguma coisa que as encontre em alguma religião ou que as tire de sua própria experiência.
Condenada
Chuck Palahniuk
Editora Leya
Tradução: Santiago Nazarian
300 pgs.
* Resenha publicada pela primeira vez em 5 de fevereiro de 2014 no blog O espanador – http://espanadores.blogspot.com.br/2014/02/colaborador-condenada-chuck-palahniuk.html. A editora Leya lançou este ano o segundo livro da série de Palahniuk, Madita.