Trecho:
“(…) Árvores, árvores, milhões de árvores, maciças, imensas, erguendo-se a grandes alturas; e aos pés delas, imprensando a margem contra a corrente, arrastava-se o vaporzinho fuliginoso, como um besouro preguiçoso arrastando-se no chão de um pórtico suntuoso. Aquilo fazia-nos sentir muitos pequenos, o sujo besouro prosseguia arrastando-se – que era exatamente o que queríamos que fizesse. Para onde os peregrinos imaginavam que ele se arrastava, eu não sei. Para algum lugar onde esperavam conseguir alguma coisa, aposto! Para mim, ele se arrastava em direção a Kurtz – exclusivamente; mas quando os canos de vapor começaram a vazar, passamos a arrastar-nos muito devagar. Os remansos abriam-se diante de nós e fechavam-se atrás, como se a floresta houvesse atravessado calmamente a água, para barrar-nos o caminho de volta. Penetrávamos cada vez mais fundo no coração das trevas. Fazia um grande silêncio ali. À noite, às vezes, o rolar de tambores por trás da cortina de árvores subia o rio e ficava parado fracamente, como pairando no ar muito acima de nós, até o primeiro romper da aurora. Se significava guerra, paz ou prece, não sabíamos. As auroras eram anunciadas pela descida de uma fria quietude; os lenhadores dormiam, suas fogueiras ardiam baixas; o estalar de um galho fazia-nos sobressaltar. Éramos viajantes errantes numa terra pré-histórica, numa terra que tinha o aspecto de um planeta desconhecido.” (O coração das trevas, Joseph Conrad)
Publicado em 1902, O coração das trevas, do britânico de origem polonesa Joseph Conrad (1857 – 1924), é um dos livros mais reverenciados do século XX. A novela de pouco mais de 100 páginas narra a história da busca do capitão Marlow por Kurtz, um lendário funcionário do governo britânico que, seguindo pelo rio Congo, se embrenhou na selva africana em busca de marfim e criou uma comunidade de habitantes locais, monopolizando o comércio do produto e contrariando os interesses coloniais ingleses na região.
Marlow tem como missão encontrar Kurtz, prendê-lo e trazê-lo de volta à civilização para que seja processado. No entanto, as informações sobre o enigmático personagem vão se acumulando de tal forma que Marlow acaba fascinado e obcecado por ele, muito antes desse encontro acontecer. Funcionários, marujos, habitantes locais, todos, sem distinção, são unânimes em exaltar a personalidade de Kurtz. Sua capacidade de comunicação e liderança são apenas algumas das qualidades que sobressaem nesse homem que, tudo leva a crer, tenha perdido o juízo e se isolado na floresta ao lado de um séquito de selvagens.
A narrativa prossegue num clima onírico, febril, mergulhando o leitor naquilo que poderia ser classificado como um interminável pesadelo e que as descrições magistrais de Conrad contribuem para amplificar. Dois outros fatores parecem ajudar nessa tensão constante da história: o gênero escolhido para contá-la e a forma como o autor a constrói.
Apesar de ser uma novela, normalmente um gênero menos complexo que o romance, por trabalhar com poucos personagens, assim como menos recursos literários, e concentrar a narrativa na ação da história – no caso de O coração das trevas, na busca de Marlow por Kurtz – é impressionante como, desde o início, o livro se mostra de uma densidade espantosa, o que poucos romances conseguem alcançar. E essa densidade é tanto psicológica quanto de ambiência.
A forma encontrada por Conrad para narrar à história é outro elemento que se adequa perfeitamente ao todo. Marlow é quem irá narrar sua história, porém, outro narrador, um marujo, que irá conhecê-lo muitos anos depois, durante uma viagem de barco pelo Tâmisa, é quem dará voz ao antigo capitão para que este conte a sua fantástica aventura. A história dentro da história, ou a técnica da boneca russa, muito comum em narrativas de terror ou de suspense do fim do século XIX e início do XX – O morro dos ventos uivantes, de Emily Brönte, e A voltado parafuso, de Henry James, além do conto O espelho, de Machado de Assis, são outras obras igualmente clássicas que utilizaram a mesma técnica narrativa – se mostra bastante eficiente.
Além da densidade, a profundidade criada em O coração das trevas faz dele um texto com vários níveis de leitura simbólica: crítica ao colonialismo e, por consequência, ao capitalismo; a religiosidade quase messiânica de Kurtz ao liderar o grupo de locais; a alienação e a loucura dos agentes responsáveis pela exploração das colônias e, por fim, as próprias trevas, citadas no título, que seriam o lugar onde o homem, solitário, se encontraria diante de si mesmo ou da morte – e que Kurtz definiria numa das mais celébres e simples frases da literatura universal: “O horror! O horror!”.
Enfim, as várias leituras que se podem ter dessa obra-prima de Conrad fazem tanto do autor como do livro uma referência literária obrigatória, sobretudo para os outros escritores. Muitas obras literárias remetem a O coração das trevas – O sonho do celta, de Vargas Llosa, e Nove noites, de Bernardo Carvalho, são dois dos mais recentes que podemos relembrar -, mas também o cinema rendeu suas homenagens à obra de Conrad, o mais famoso, claro, Apocalipse Now, filme de 1979, digido por Copolla, que adaptou a narrativa da África colonial ao conflito do Vietnã. O que comprova a importância dessa obra e seu papel de inesgotável manancial para o imaginário geral.
Trecho:
“Ressentia-me amargamente do absurdo perigo de nossa situação, como estar à mercê daquele fantasma atroz fosse uma necessidade desonrosa. Não ouvia um som, mas através do binóculo via o minúsculo braço estendido em comando, o queixo movendo-se, os olhos daquela aparição reluzindo sombriamente na ossuda cabeça, que balançava em grotescos estremeções. (…) Parecia ter no mínimo uns dois metros e dez. O cobertor caíra, e seu corpo emergia doloroso e apavorante como de dentro de uma mortalha. Eu via a arca das costelas agitando-se toda, os ossos do braço acenando. Era como se uma imagem animada da morte, esculpida em marfim velho, sacudisse a mão com ameaças e uma multidão imóvel feita de bronze escuro e reluzente. Vi-o escancarar a boca – aquilo lhe dava uma aparência fantasticamente voraz, como se quisesse engolir todo o ar, toda a terra, todos os homens à sua frente. Uma voz profunda chegou fracamente até nós. Devia estar gritando. De repente, tombou de costas. A padiola estremeceu quando os padioleiros tornaram a avançar, trôpegos, e quase ao mesmo tempo notei que a multidão de selvagens desaparecera sem qualquer movimento perceptível de retirada, como se a floresta que havia ejetado aqueles seres tão de repente os houvesse recolhido de novo, como o ar é puxado numa longa aspiração.” (O coração das trevas, Joseph Conrad)
*Como O coração das trevas é uma obra de domínio público, há várias ediçoes disponíveis no mercado. A edição da Brasiliense, de 1984, traduzida por Marcos Santarrita e com prefácio Roberto Muggiati, foi a que utilizamos para fazer esta resenha. No momento, ela está esgotada.