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Autor Carlos Drummond de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, cronista, Resenha Moça deitada na grama
Trecho:
“- Você vende muito?
– Em 120 milhões de brasileiros, tenho cinco mil leitores garantidos.
– Na sua opinião, qual o seu melhor livro?
– São dois. Um que só foi elogiado pelos críticos. Outro, que só foi apreciado pelos leitores.
– Você se sente realizado?
– Me sinto real, isto é, tenho CPF, ISS, INPS e outras siglas que provam minha realidade.
– Em que você se inspira para escrever?
– Quando estou inspirado não escrevo, para não gastar a inspiração. Só escrevo a frio.
– Como você se sente quando apontam você na rua?
– Respondo logo: É engano, o culpado fugiu!
– Quais as maiores influências na sua obra de escritor?
– O café da manhã é fundamental. Almoço e jantar também. Sem comida à hora certa, banho, barba feita, intestino em dia, fica muito difícil de escrever.
– Seus autores prediletos?
– Escritor tem lá tempo de ler escritores?
– Por que você escreve?
– Não Sei. Você sabe? Alguém sabe?”
(O escritor responde, coitado)
O mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987) é um dos maiores poetas brasileiros, mas cultivou a crônica como poucos e, em seus últimos anos de vida, foi através dela – da crônica – que o poeta conseguiu aumentar seu contato com o público e a sua renda de funcionário público aposentado e dos direitos de seus livros.
Embora publicado postumamente, em 1987, ano da morte do autor, Moça deitada na grama teve todos os trabalhos selecionados por Drummond. As crônicas foram escritas entre o final dos anos 1970 e final dos anos 1980, pouco antes do falecimento do autor.
Como toda crônica, os temas dos textos são bastante variados, vão desde as mazelas do cotidiano do fim do período militar e o início da Nova República – como em O medo e o relógio, O cão de dois donos, Um cigarro, um fósforo -, passam por temas que ainda hoje fazem parte das preocupações da sociedade, como as questões ambientais – Os bichos chegaram, A visita da borboleta – e chegam até assuntos que sempre estiveram na ordem do dia em qualquer tempo, seja no Brasil ou outro lugar do mundo, mesmo que de forma restrita a um segmento da sociedade – O que dizem as camisetas, O escritor responde, coitado.
O que sobressai nos textos do Drummond são um humor inteligente e sutil e uma elegância e simplicidade na escrita. A célebre frase de Clarice Lispector – “Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho” – parece caber perfeitamente à coletânea do poeta-cronista. A argúcia e a precisão com que Drummond trata seus temas fazem com que o leitor perceba a seriedade com que o autor tratava o seu trabalho diário de cronista.
O cronista talvez seja uma espécie de sacerdote do banal, um intérprete do cotidiano que, atento ao mundo, ao corriqueiro, à vida que pulsa nas ruas, nos botecos e repartições públicas, consegue enxergar o que todos são capazes de ver e sentir, mas poucos são capazes de expressá-las tão bem. E é esse ato de expressar, de comunicar o que se sente, é a diferença dos grandes cronistas.
O Brasil sempre teve grandes cronistas. Desde o fim do século XIX e início do século XX, grandes autores como Machado de Assis e Lima Barreto se dedicaram a esta forma literária que, devido à proximidade com o jornalismo e a informação vinculada ao cotidiano, sempre foi menosprezada e tida como um gênero menor.
Na época em que Drummond publicava seus trabalhos na imprensa, por exemplo, havia muitos cronistas reconhecidos pela sua excelência. Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, estão entre eles, e Drummond, ao menos em sua coletânea de despedida, merece ser incluído nesse time.
Trecho:
“Apareceram tantas camisetas com inscrições, que a gente estranha ao deparar com uma que não tenha nada escrito.
– Que é que ela está anunciando? – indagou o cabo eleitoral, apreensivo. – Será que faz propaganda do voto em branco? Devia ser proibido!
– O cidadão é livre de usar a camiseta que quiser – ponderou um senhor moderado.
– Em tempo de eleição, nunca – retrucou o outro. – Ou o cidadão manifesta sua preferência política ou é um sabotador do processo de abertura democrática.
– O voto é secreto.
– É secreto, mas a camiseta não é, muito pelo contrário. Ainda há gente neste país que não assume sua responsabilidade cívica, se esconde feito avestruz e…
– Ah, pelo que vejo o amigo não aprova as pessoas que gostam de usar camiseta limpinha, sem inscrição na cor natural em que saiu da fábrica (…)”
(O que dizem as camisetas)
Moça deitada na grama
Carlos Drummond de Andrade
Editora Record
218 pgs.
*A obra de Carlos Drummond de Andrade está sendo reeditada pela Companhia das letras, mas Moça deitada na grama permanece fora de catálogo.