Trecho:
“Três anos antes, sentado no salão de leitura principal da Biblioteca Pública de Nova York, diante de um volume de filosofia do século XVII, deparei-me com o fato de que 16 anos após a sua morte, em 1650, Descartes fora submetido à indignidade de ter seus ossos desenterrados, e a partir de então as pessoas foram se apoderando de pedaços de seus restos mortais.
(…)
Assim, comecei a perseguir esse assunto, primeiro nas horas livres, através de livros, depois, à medida que ele tomava conta de mim, indo com a família morar na Europa por um ano, onde passei longos dias nos cubículos pós-modernos da Biblioteca Nacional de Paris; em contato com filósofos e historiadores; viajando da casa do rio Loire, onde Descartes nasceu (e que ainda está de pé), para a casa em Estocolmo, onde ele morreu (que igualmente resiste); e seguindo os rastros dos ossos pela Europa Oriental. Finalmente, vi-me no porão de um museu de Paris, olhando para as órbitas arruinadas de um crânio humano, como Hamlet contemplando o pobre Yorick”. (pgs. 14-15)
‘O bom senso é a coisa melhor dividida no mundo, pois cada um se julga tão bem dotado dele que ainda os mais difíceis de serem satisfeitos em outras coisas não costumam querê-lo mais do que têm’*. É com essa frase que René Descartes (1596-1650), em 1637, abre o seu livro mais conhecido, Discurso sobre o método e princípios da filosofia, para muitos, o texto inaugural da filosofia moderna que iniciou também um processo histórico-filosófico-político que culminaria com a criação e a difusão dos ideais do Iluminismo e, no plano político, com a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos. No entanto, Descartes era um homem cheio de contradições e não deixa de ser curioso o que aconteceu com seus restos mortais.
Nos acontecimentos narrados em Os ossos de Descartes, de Russell Shorto, colaborador da New York Times Magazine, numa mistura vibrante de história e reportagem, o leitor é envolvido e convidado a embarcar numa viagem não só pela história da filosofia, mas da própria França e, de um modo geral, da história e da evolução da ciência nos 350 anos que separam a data da morte do filósofo e a missa em homenagem a sua alma ministrada por um padre e filósofo especializado em sua obra quando o livro termina. Os leitores pouco familiarizados com a história da filosofia ficam sabendo que, ao contrário do que se possa imaginar, de alguém que propõe a primazia da razão sobre a fé, e que põe abaixo todas as ideias construídas em mais de 1500 anos de predomínio da Igreja em toda a Europa, Descartes era extremamente católico e foi com muitas dúvidas que publicou seu livro mais célebre.
Chamado a prestar contas à Igreja sob certos aspectos de sua obra mais famosa, como as passagens em que sugere a possibilidade do mundo ser uma criação de um Deus Enganador ou de um Gênio do Mal, que de tudo faria para nos ludibriar, o filósofo mostrou-se humilde e reiterou sua convicção na existência do Deus dos cristãos, ele que normalmente era arrogante e implacável com os inimigos, ou, nas palavras de Shorto, “vaidoso, vingativo, peripatético e ambicioso” .
Autor de uma das mais conhecidas frases da Filosofia – Penso, logo existo -, o que Descartes queria mostrar era que precisamos colocar em dúvida as nossas certezas – algo que até hoje, quase 400 anos depois da publicação de seu texto, é difícil de fazermos. A verdade é que, naquele momento histórico, não poderia afirmar isso abertamente sem que sofresse as consequências. Seja por temer pela própria vida ou pela obediência aos desígnios de Deus, o homem medieval ainda estava presente no filósofo que escreveu a obra que praticamente fundou a modernidade, provando que romper com o obscurantismo dogmático nunca foi tarefa fácil nem para os cérebros mais privilegiados.
Morto em 1650 em Estocolmo, onde fora morar três anos antes a convite da rainha Christina e do seu amigo, o embaixador francês na Suécia, Pierre Chanut, Descartes nunca se adaptou ao clima nórdico. Chegando a Suécia com 50 anos, quando a expectativa de vida de ‘uma criança da França de Descartes era de 28 anos’, o filósofo sempre fora acometido dos mais variados problemas de saúde. Quis voltar para França e até para a Holanda, onde viveu por algum tempo, servindo nas tropas de Maurício de Nassau, resolvendo problemas de engenharia militar, mas a rainha Christina e seu amigo Chanut sempre o convenciam a ficar, tanto que, com um certo remorso, após sua morte, lhe prestaram as maiores honras.
Dezesseis anos depois, a França pediu que seus despojos fossem levados para serem enterrados em seu solo e, naquele momento, o crânio do filósofo mais discutido na Europa se extraviou, fato que só seria descoberto cerca de 150 anos depois, em 1818, quando seus ossos foram transportados para o cemitério da igreja de Saint-Germain-des-Prés. Neste momento, além da busca pela cabeça perdida de Descartes e a resolução do mistério de seu desaparecimento, começa também o grande debate em torno das descobertas científicas que envolveram desde as formas para exumação e o reconhecimento de cadáveres até a aferição da inteligência dos indivíduos. Mesmo depois de morto, indiretamente, Descartes contribuiria de alguma forma para o progresso da humanidade em campos que ele próprio estudou.
A importância de Descartes não se restringiu apenas à filosofia. Ele também fez grandes contribuições à matemática e, devido a uma tragédia pessoal, fez intensos estudos de medicina, como assinalou no fim do Discurso sobre o Método, com o intuito de “devotar todo o tempo que ainda lhe restasse de vida a nenhuma outra ocupação a não ser o empenho em adquirir algum conhecimento sobre a Natureza, de tal forma que pudéssemos a deduzir regras para a medicina que nos dessem maiores certezas do que as de uso atual”. A afirmação poderia ser irônica se não fossem conhecidos os predicados de seu autor: ele falava sério, o que demonstra, de fato, uma ambição desmedida e, de certa forma, ingênua. Descartes acreditava que em poucos séculos, com algum conhecimento científico, o homem poderia viver com saúde mais de cem anos.
Sobre o livro em si, não há muito mais o que falar, além de que pode agradar bastante aos que têm interesses múltiplos entre os diversos ramos das ciências humanas e da evolução científica. Mais do que reiterar o prazer que foi lê-lo, destaco outro trecho do livro de Shorto que revela boa parte do mistério que um filósofo do século XVII ousou desvendar ou, pelo menos, legar a sua resolução aos que viessem depois dele:
“Se a saga dos ossos de Descartes pode servir como uma metáfora da modernidade, então é duplamente simbólico que, durante suas peregrinações, a cabeça, de algum jeito, tenha sido separada do corpo e acabado por transformar, enquanto circulava por seus descaminhos ao longo dos séculos, em uma fonte de mistério para vários pensadores, artistas e cientistas. Pois o que mais Descartes representa hoje em dia além do domínio do cérebro sobre a matéria – da cabeça sobre o corpo? Quem trouxe para nós a questão corpo-mente?” (pg. 132)
Os ossos de Descartes
Russel Shorto
Tradução: Daniel Estill
267 pgs.
Objetiva
*Trecho extraído de Discurso sobre o método e princípios da filosofia, pg. 9, Publifolha, 2010, vol. 6, Coleção Livros que mudaram o mundo.