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Estátua de Carlos Drummod de Andrade em Copacabana

O niilista feliz

 

No início de Trópico de Câncer, Henry Miller afirma que aquilo que escreve, o texto que viria a se tornar o seu mais famoso livro, é “um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza… e do que mais quiserem”. Além de blasfema, cômica e revelar bem o caráter anárquico e niilista do autor, a frase não deixa de demonstrar certa influência antirreligiosa de origem germânica que teve, entre outros representantes, Goethe, Nietzsche e (por que não?) Marx.

Exagero à parte, descendente de alemães, embora norte-americano de nascimento, Miller, um misantropo assumido e que reservava muito pouca consideração para com seus semelhantes, tinha grande admiração por seu avô – admiração revelada em seu outro igualmente conhecido livro, Trópico de Capricórnio, publicado em 1939, cinco anos depois de Trópico Câncer -, um sapateiro alemão que nunca falou uma palavra de inglês, mesmo vivendo muitos anos em Nova York.

Ao escrever sua obra-prima, o que Miller faz, na verdade, é “uma vingança contra a realidade”, na forma como está explicitada na célebre definição de Flaubert. Tendo passado muitos percalços em sua vida, o escritor norte-americano foi para Paris já perto dos quarenta anos, esperando viver de sua própria arte (e conseguiu, ao contrário do que se poderia esperar para alguém que não tivesse a sua obstinação).

Ainda em Trópico de Câncer, pouco antes da afrontosa blasfêmia, o autor indica o motivo que lhe fez fazer tal afirmação contra o Criador: a consciência de ser um artista e de que nada em contrário que qualquer pessoa pudesse dizer poderia demovê-lo daquela opinião.

 

“Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava em ser um artista. Não penso mais. Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.”*

 

De bravata em bravata, de provocação em provocação, devolvendo todo seu rancor e frustração acumulados até então, em suas páginas o autor vai desconstruindo e destruindo tudo aquilo que possa diminuí-lo artisticamente, fazendo de sua arte profissão de fé, quase como um camicase, um verdadeiro “terrorista das letras”, cuja defesa de seus princípios e dons artísticos parecem os principais – na verdade, únicos – objetivos capazes de mobilizá-lo.

Não por acaso, o peruano Vargas Llosa, em As verdades das mentiras, um livro de ensaios em que o Nobel de Literatura lista e analisa as 25 melhores obras literárias do século XX, na sua opinião, classifica Miller como o “Niilista feliz”. Nada deixaria Miller mais feliz do que derrubar todo tipo de obstáculo, fosse ele artístico ou não, para edificar entre os destroços apenas a sua concepção de arte.

 

Palavras que ressoam

 

No primeiro dia do ano, fazendo uma viagem curta de ônibus, me lembrei do início de Trópico de Câncer, e aquelas palavras, tão cruéis quanto cômicas – “um pontapé no traseiro de Deus”, encontraram ressonância numa antologia de poemas de Carlos Drummond de Andrade** que escolhi para me fazer companhia em minha primeira viagem do ano.

A primeira parte da antologia, denominada “Um eu todo retorcido”, traz poemas com alto teor crítico e um amargor contundente que atingem um homem na casa dos quarenta anos, ou seja, mais ou menos no meio do caminho existencial, e com poucos problemas resolvidos, como uma “bomba”.

Poemas como os clássicos “José”:

 

“E agora, José?/A festa acabou,/a luz apagou,/o povo sumiu,/a noite esfriou,/e agora, José?/e agora, você?/você que é sem nome,/que zomba dos outros,/você que faz versos,/que ama, protesta?/e agora, José?”

 

Ou “A flor e a náusea”:

 

“Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta./Melancolias, mercadorias, espreitam-me./Devo seguir até o enjôo?/Posso, sem armas, revoltar-me?”

 

E outros poemas menos conhecidos, mas igualmente dolorosos, como “Consolo na praia”, que aqui segue inteiro:

 

“Vamos, não chores./A infância está perdida./A mocidade está perdida./Mas a vida não se perdeu./O primeiro amor passou./O segundo amor passou./O terceiro amor passou./Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo./Não tentaste qualquer viagem./Não possuis carro, navio, terra./Mas tens um cão./Algumas palavras duras,/em voz mansa, te golpearam./Nunca, nunca cicatrizam./Mas, e o humour?/A injustiça não se resolve./À sombra do mundo errado/murmuraste um protesto tímido./Mas virão outros./Tudo somado, devias/precipitar-te, de vez, nas águas./Estás nu na areia, no vento…/Dorme, meu filho.”

 

Coincidentemente, os três poemas são de uma mesma época, em que o poeta itabirano, mostrava-se mais sensível a textos de cunho social e existencialista: “José” foi publicado em 1942, no livro Poesias, enquanto que “A flor e a náusea” e “Consolo na praia” foram publicados em A rosa do povo, de 1945.

Da mesma forma que todos eles caem sem piedade sobre escombros de sonhos de juventude em meio a uma vida vazia de realizações, afetos e sentido, Drummond – nascido em 1902 -, assim como Henry Miller, estava na casa dos quarenta anos e certamente muito do que colocava em seus textos eram suas angústias pessoais como homem e como artista, uma vez que não devia ter ideia do significado que sua obra adquiriria ao longo do tempo.

Drummond surge na primeira manhã do ano como uma espécie de Henry Miller mineiro que, se não tem a ousadia de atacar Deus de frente, provocando-o e insultando-o, por outro lado, não tem o menor pudor de tripudiar sobre o homem de meia-idade, que ele também era na época da escrita desses poemas, e que se mostra aquém dos seus desejos mais verdadeiros e secretos.

Se a idade e as proeocupações inerentes a ela, como homem e artista, une a ambos, algo bem diverso é a postura que cada um adquire diante de toda a problemática levantada. Enquanto Miller se arroga ao direito de se afirmar artista diante de todas as adversidades encontradas, mesmo que isso não passe de uma convicção pessoal, sem qualquer sustentação aparente no mundo real – uma vez que nada, realmente nada, em sua vida de então lhe dava a certeza de ser reconhecido como tal, a não ser a própria obra que produzia numa solidão e num ambiente totalmente desfavoráveis -, Drummond se apega a uma humildade quase indigente do homem, num estado de solidão e de abandono quase desesperadores diante da derrota, seja ela iminente ou consumada, para, a partir daí, pensar em algo que possa redimi-lo de tamanha desolação.

Talvez a humildade e o desespero dos versos Drummond sejam apenas aparentes, não passando de sua estratégia para a vitória que, sem dúvida, ele próprio alcançaria no fim da vida – e com justiça; nem a arrogância e a temeridade de Miller fossem verdadeiramente o que sentisse diante do cenário do submundo parisiense, no qual se debruçava para escrever o seu libelo contra Deus.

De qualquer forma, se observarmos ambas as estratégias pelo prisma de um analista de RH, Miller foi bem mais assertivo do que Drummond, embora a sua soberba possa causar muita antipatia, ao que ele certamente não daria a mínima. Em todo caso, ao final, ambos se mostraram grandes vencedores, apesar de seguirem caminhos totalmente diferentes tanto na literatura quanto na vida.

O poeta mineiro não teve uma vida tão aventureira quanto o escritor norte-americano, nem uma verve tão niilista e anárquica. Funcionário público de carreira, chegou até a ser chefe de gabinete do Ministro da Educação do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), Gustavo Capanema, e contentou-se com uma vida pacata e a segurança mínima que um assalariado do governo pode contar enquanto exercia a sua verdadeira vocação: a poesia.

No entanto, apesar de poeta, nunca deixou de observar com atenção as mazelas públicas e as frustrações privadas que um homem medíocre de classe média pode acumular ao longo da vida. Este sentido de observação aguda, que também se estende para as pequenas coisas do cotidiano, faria com que Drummond se tornasse um dos grandes cronistas de sua época. Por muitos anos, o poeta também se dedicou à crônica, escrevendo para os principais jornais do País, o que lhe garantiu uma renda extra até o fim da vida.

Se Henry Miller, com Trópico de Câncer, de maneira metafísica e bravateira, atinge um belo “pontapé no traseiro de Deus”, Drummond não deixa por menos, e acerta outro belo “chute no saco do homem de meia-idade” tirando-o de combate por algum tempo, sem fôlego e sem ânimo, diante da pequenez da vida pregressa que carrega e da que vislumbra para o futuro. E descobrir este fato numa época de tanto pessimismo e reflexão, não deixa de ser um golpe baixo. Mais um que a vida nos dá.

 

*Trópico de Câncer, Henry Miller, Biblioteca Folha de S. Paulo, 2003, tradução Aydano Arruda.

**Antologia poética, Carlos Drummond de Andrade, José Olympio, 1978.